Este ano, a Rede Lado teve o prazer de contar com 12 obras do artista baiano Aurelino dos Santos (1942) para construção do nosso Calendário físico 2026, que será distribuído nos escritórios associados da Rede. O calendário é um projeto anual do GT COM, que seleciona o artista, pensa nas artes, layout e organiza as impressões.
Nascido em 1942, Aurelino dos Santos nasceu e cresceu no bairro Ondina, onde ainda vive, em Salvador, na Bahia. Ele retrata paisagens urbanas, a vida cultural e religiosa a partir de elementos geométricos muito marcantes em sua obra. Aurelino foi cobrador de ônibus na juventude e iniciou a carreira como artista plástico por influência do escultor baiano Agnaldo Santos (1926-1962), incentivado pela arquiteta paulista Lina Bo Bardi. Aureliano tem algumas de suas peças expostas em galerias de São Paulo, Salvador e já teve trabalhos expostos em vários países.
Para conhecer mais sobre o autor e sua obra, apresentamos essa entrevista inédita feita pela Rede Lado com intermediação da equipe que assessora o artista:
Como a infância e a vivência de Aurelino dos Santos em Salvador influenciaram sua estética e escolha de temas nas obras?

Foto: TV Bahia
Aurelino dos Santos nasceu e cresceu no bairro de Ondina, em Salvador, uma cidade marcada por uma intensa vida urbana, cultural e religiosa. Essa vivência moldou profundamente sua estética. As paisagens urbanas, que compõem grande parte de sua produção, são uma releitura geométrica e sensível do ambiente que o cercava desde a infância. A convivência com a arquitetura popular, os contrastes entre o caos urbano e a organização espacial típica das cidades nordestinas, e a presença constante do mar influenciaram suas composições rigorosas e coloridas. Além disso, sua vivência marginal, longe dos centros formais de formação artística, ampliou sua sensibilidade para aspectos cotidianos da cidade que, para muitos, passariam despercebidos — transformando-os em matéria de arte.
Quais são os elementos mais recorrentes em suas obras e o que eles representam dentro da sua visão de mundo?
Os elementos mais recorrentes na obra de Aurelino são formas geométricas — quadrados, retângulos, planos sobrepostos —, organizadas de forma precisa e vibrante. Essas formas compõem paisagens urbanas e arquiteturas idealizadas que parecem vistas de múltiplos ângulos ao mesmo tempo. A geometrização obsessiva é uma estratégia de organização interna diante do caos externo, revelando uma tentativa de controle e compreensão do mundo à sua volta. Em suas obras, a cidade aparece como um espaço reinventado, onde a ordem estética se impõe à desordem social e emocional. O uso de cores intensas também é marcante, dando vida e emoção a essas construções visuais, que parecem funcionar como mapas mentais da sua experiência urbana e subjetiva.
De que forma o autodidatismo impactou a trajetória artística de Aurelino dos Santos e como isso dialoga com o conceito de arte popular ou espontânea?
O autodidatismo de Aurelino dos Santos é uma marca central de sua trajetória. Sem formação acadêmica e analfabeto, ele desenvolveu uma linguagem própria, livre das convenções da arte institucionalizada. Esse percurso o insere no campo da chamada arte popular ou espontânea, onde o impulso criativo parte da experiência pessoal e do cotidiano, e não de escolas formais. No entanto, sua obra extrapola os limites dessas categorias: sua sofisticação formal e o diálogo com movimentos como o concretismo e o neoconcretismo mostram que sua criação, embora “fora do sistema”, se conecta com questões fundamentais da arte contemporânea. A ausência de formação tradicional permitiu a Aurelino explorar uma liberdade inventiva singular, o que o torna um exemplo poderoso da potência criativa presente em artistas marginalizados.
Como a obra de Aurelino foi recebida ao longo do tempo, tanto por instituições artísticas quanto pelo público? Houve momentos de reconhecimento ou de invisibilidade?
A trajetória de Aurelino dos Santos é marcada por períodos alternados de invisibilidade e reconhecimento. Durante muitos anos, sua produção permaneceu à margem, sendo descoberta por colecionadores, galeristas e curadores atentos à potência da arte popular e autodidata. A partir dos anos 2000, especialmente com exposições em instituições importantes como o Museu Afro Brasil, o MAM Bahia, o Instituto Tomie Ohtake e a Fondation Cartier, em Paris, sua obra passou a ser valorizada em contextos institucionais de prestígio. A recepção crítica tem destacado a força estética e poética de sua produção, e o público, cada vez mais sensível às vozes periféricas na arte, tem respondido com crescente interesse. No entanto, como ocorre com muitos artistas fora dos circuitos tradicionais, sua visibilidade ainda depende do esforço contínuo de curadores e galerias comprometidas com uma visão mais inclusiva da história da arte brasileira.
Qual legado Aurelino dos Santos deixa para a arte brasileira e para os artistas negros e autodidatas do país?

O legado de Aurelino dos Santos é múltiplo e profundamente inspirador. Ele demonstra que a arte pode nascer em qualquer lugar — inclusive nas margens da sociedade — e ainda assim alcançar níveis de sofisticação estética e intelectual reconhecidos internacionalmente. Para a arte brasileira, ele amplia as fronteiras do que se entende por arte contemporânea, integrando a experiência da esquizofrenia, da marginalidade e do autodidatismo como motores criativos legítimos. Para artistas negros e autodidatas, Aurelino representa uma figura de resistência e afirmação: ele mostra que é possível transformar a exclusão em linguagem, e que a arte pode ser um espaço de reconstrução do mundo a partir de uma perspectiva própria, sem mediações acadêmicas ou institucionais. Seu trabalho desafia o cânone e reconfigura os mapas da arte brasileira.
