Sabia que você pode sofrer desse mal? Em alguma medida, todos sofremos, mas o alento é que tem cura e se chama conhecimento. Vamos entender juntos?
O capacitismo é o preconceito dirigido às pessoas com deficiência, a partir da premissa de que não somos capazes de estudar, trabalhar, competir, ter vida sexual nem realizar as tarefas do dia a dia, justificando atitudes discriminatórias. Ele começa nos termos usados para nos definir, ao longo da história: aleijados, inválidos, loucos, excepcionais ou simplesmente deficientes, palavras que refletem o olhar depreciativo.
Além dessas, algumas palavras e expressões que usamos são capacitistas e nem percebemos que podem ser muito ofensivas: louco; maluco; retardado; imbecil; capenga; deformado; autista, “cego de raiva.”, “dar uma de João sem braço.”, “não temos braço para realizar essa tarefa”, “desculpa de aleijado é muleta.” e tantas outras que reforçam o segregacionismo.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015, é a norma brasileira que se destina a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Nele, está a definição de Pessoa com Deficiência: quem tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Já as barreiras são definidas como: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros.
A Lei considera discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. Destaca ainda que é dever de todos comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência.
A mentalidade da “incapacidade” foi responsável por nos trancafiarmos em quartos escuros, distantes do convívio social, criados como a vergonha que as famílias devessem esconder. Na natureza, alguns se livram das crias diferentes, como um reflexo para assegurar a sobrevivência da espécie na batalha da evolução. Humanos pensam e podem modificar o ambiente de modo a auxiliar a evolução da sua espécie com a inclusão da diversidade. Humanos são capazes de promoverem uma sociedade plural e que assegure o florescimento de todos os seus membros. Mas, quantos de nós não continuamos medindo os outros a partir dos resquícios da animalidade instintiva ou de argumentos que nunca paramos para questionar se tinham fundamento?
Estamos saindo dos porões. Com a criação de políticas públicas e eliminação de barreiras, podemos sair também dos sinais, das ruas, dos programas de caridade, dos benefícios assistenciais e adquirirmos a cidadania plena, como atores sociais aptos a construirmos um país mais humano. Uma longa e proveitosa jornada da qual não vamos recuar.
No universo do trabalho, há bastante trabalho a ser feito. A Lei 8.213/91 prevê as cotas nas empresas, em seu artigo 93, mas somente o faz naquelas que possuam a partir de 100 empregados, o que dificulta ainda mais a contratação numa realidade de queda abrupta dos postos formais de trabalho, com o avanço da automação. Essa garantia acaba servindo de desculpa para a ausência dessa população em lugares sem indústrias ou grandes corporações. Por uma via inversa, acaba por fortalecer o capacitismo.
Estudo divulgado no site Jornalista Inclusivo mostra um dado preocupante no universo do trabalho: 7 em cada 10 brasileiros com deficiência acreditam que empresas têm preconceito na contratação. Nem todo mundo tem disposição para o enfrentamento de preconceitos, especialmente quando falta representatividade para a luta coletiva ou quando essa representatividade é assistencialista ou “para cumprir cota”. Quantas pessoas não deixam de lutar pela empregabilidade pelas barreiras de locomoção, acesso ao local de trabalho, banheiros adaptados, locais adequados pra refeições nas proximidades? Vivemos cheios de ausências.
A consequência se reflete na presença de pessoas com deficiência nos postos de trabalho formais: dados recentes da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), divulgados pelo Ministério da Economia, confirmam a ocupação de apenas 1% das vagas dos 46 milhões de vínculos no país. Este dado, confrontado com o censo de 2010, de que somos cerca de 6,7% da população, leva à pergunta: onde estão essas pessoas? Recebendo benefício assistencial do INSS? Quais as políticas públicas para reverter essa realidade?
Mentalidades não mudam por milagre. É importante o trabalho das leis, e da educação, mas é essencial o da visibilidade. Não adianta as empresas cumprirem as cotas nos piores postos ou nas salinhas mais afastadas. É preciso que essas pessoas apareçam, sejam mostradas na mídia em situações cotidianas de trabalho, estudo, participação social e não como atração de programa para derramar lágrimas ou incentivar piedade. O foco precisa sair das limitações e do discurso de superação para a naturalidade de uma vida com a eliminação das barreiras.
Não precisamos de novelas que nos façam voltar a enxergar no último capítulo, ou a levantar da cadeira de rodas, ou da cirurgia milagrosa. Precisamos de um novo olhar, humano e inclusivo, de políticas efetivas de eliminação de barreiras, da presença naturalizada em todos os espaços sociais. Precisamos que se afaste o capacitismo do nosso caminho, para que possamos passar com nossa igualitária humanidade.
Meirivone Ferreira de Aragão – advogada, sergipana, sócia do Britto, Inhaquite, Aragão, Andrade e Advogados Associados, PCD, integrante da Rede Lado e da ABJD.