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jul 8, 2021

“Coisa nossa”: festas populares e as manifestações coletivas

Entre complexidades regionais, uma história social e política que não começou, por mais que nos façam querer acreditar que sim, com a invasão dos europeus no território que hoje chamamos…

Entre complexidades regionais, uma história social e política que não começou, por mais que nos façam querer acreditar que sim, com a invasão dos europeus no território que hoje chamamos de país, o Brasil traz, também, a memória e a tradição de sermos, em nossa mais profunda diversidade, um povo que tem gosto pelas festividades.

Do Bumba Meu Boi à Oktoberfest, transformamos, cada qual do seu jeito, as festas populares como um todo. O Carnaval é a maior e mais falada festa dentro e fora do país, mas, com toda a certeza, não a única. Mas, todas elas têm algo em comum: a participação popular. O Carnaval, por exemplo, teve suas primeiras intervenções feitas por pessoas escravizadas no começo da colonização. Só no século XIX a festa foi começar a ter a configuração que conhecemos hoje no Rio de Janeiro.

Mesmo com origens de outros países, caso do próprio Carnaval e da Oktoberfest, o povo brasileiro foi transformando essas festas em “coisa nossa” e a fama dessas festas se espalhou pelo mundo. O Carnaval no Rio de Janeiro, por exemplo, recebeu em 2019 mais de 2 milhões de turistas e movimentou cerca de 4 bilhões de reais na economia da cidade. As festas juninas movimentam o turismo interno no Brasil e já são dois anos sem essa cultura tão importante no país.

“As festas podem ser examinadas do ponto de vista da atividade lúdica, mas também como um acontecimento aglutinador da realidade das comunidades envolvidas, no sentido de avaliar seu potencial como formadora da cidadania, da conscientização e da participação social, porque um dos elementos mais significativos no processo de realização da festa é a transformação do indivíduo comum em protagonista daquele evento,”¹ afirma Maria Nazareth Ferreira, professora titular de Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo no trabalho “Comunicação, Resistência e Cidadania: As Festas Populares”.

Neste mesmo trabalho, a professora afirma que, realmente, as festas populares podem ter um efeito “mercadológico” que ajuda a economia de cidades menores, mas mais do que isso, é um instrumento importante para entender os fenômenos de comunicação das classes populares que, geralmente, são quem produzem as festas do começo ao fim, meses antes do momento ocorrer de fato.

Célia Menezes é advogada no escritório Mary Cohen (associado Rede Lado) e é participante da festa do Arrastão do Pavulagem, um grupo musical que começou em 1987 no Pará e em 2017 foi consagrado como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do município de Belém. Célia toca barrica desde 2016 no arrastão e tem uma memória afetiva com a festa desde criança.

Célia (esquerda) tocando barrica no arrastão do pavulagem. Foto de Octavio Henriques.

“É um festejo muito especial para mim. Desde criança a minha mãe me levava nos arrastões, que não tinham o formato que têm hoje, era mais simples. Minha mãe faleceu quando eu tinha 11 anos, então ficou essa lembrança muito presente do arraial do pavulagem ligados à ela. Além disso, eu sempre quis tocar. Ficar estes dois anos sem poder participar por conta da pandemia está sendo bem difícil”, Célia Menezes.

Danilo Lagoeiro é pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Comunicação Popular (NCP) da Universidade Estadual de Londrina, professor colaborados da mesma no Departamento de Comunicação e produtor cultural e fala da importância e da falta que as festas podem fazer para a população, principalmente no que tange as manifestações culturais:

“Sim, perdemos muito nestes dois últimos anos. No ponto de vista econômico, cultural, espiritual, imaginário. Por outro lado, a gente assiste uma reorganização de festas neste contexto online, mesmo com os limites. Essa proposta chega aos rincões do Brasil também, oferecendo entretenimento e até reflexões críticas sobre o contexto atual somado a pandemia. Mas há também contradições, por conta dessa valorização do audiovisual em detrimento da produção cultural presencial. Mas mesmo com as manifestações culturais online, perdemos muito sem o presencial.”

Além da perda financeira que as festas fazer com a movimentação de pessoas, vendas e preparações, o maior prejuízo é na interrupção das tradições anuais por conta da pandemia. Mesmo com algumas iniciativas online, caso do próprio arrastão do pavulagem, com certeza a presença do calor humano é o que mais faz diferença.

“Eu vejo o arrastão do pavulagem com uma altíssima importância para o lazer das pessoas. Está culturalmente impregnado na veia paraense, de levar as crianças desde pequenas no arrastão; é bem presente em Belém e isso nos foi retirado por conta da pandemia. O arrastão é uma das expressões de alegria da nossa cultura paraense, da nossa cidade. Até quem não gosta do pavulagem aproveita porque sabe que é um momento de festar. E esses dois anos sem a festa afetou muito a socialização. Estamos muito ansiosos para a volta dos arrastões presenciais,” reitera Célia.

Danilo também explica que, além do povo, há um elemento essencial na cultura das festas populares que permeiam o Brasil: valores civilizatórios afro-brasileiros. Os elementos mais importantes, que estudos como o da pesquisadora Azoilda Trindade apontam são: comunitarismo, elementos de religiões (que vai do profano ao sagrado), ancestralidade, a importância da roda, musicalidade, espaços abertos, gratuidade, dança e saídas às ruas.

“Há um impacto tremendo em tudo na perspectiva do país. Principalmente sobre os vínculos comunitários. Especificamente, eu sou um capoeirista brincante e estou há um ano e meio sem roda de capoeira e para quem partilha de manifestações culturais, seja a capoeira, seja outra, é uma falta tremenda”, afirma Danilo.

Mesmo sem as festas, a ingestão de bebida alcoólica durante a pandemia foi número recorde e também o aumento do venda de antidepressivos, em 17%. Isso é sintomático, já que a pandemia no Brasil não tem data para terminar e o número de mortos só cresce a cada dia. As festas populares sempre fizeram parte das nossas manifestações culturais e ficar sem poder fazê-las está afetando cada vez mais o nosso imaginário e comunitarismo.

 

¹ FERREIRA, Maria Nazareth. As Festas Populares na Expansão do Turismo: A Experiência Italiana, 2a Edição, revista e ampliada. São Paula Arte&Ciência, 2005.

 

Mariana Ornelas – Rede Lado