Diante da declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11/03/2020 reconhecendo a pandemia global do vírus COVID-19, bem como com a identificação dos primeiros casos de pacientes contaminados no Brasil, surgem questionamentos vinculados às relações de trabalho e aos efeitos jurídicos de afastamentos e da realização de trabalho remoto.
O escritório Antônio Vicente Martins Advogados, integrante da Rede Lado, analisou as principais questões que emergem nessa conjuntura, bem como alternativas jurídicas cabíveis e reflexões necessárias, visando a proteção do trabalhador nesse contexto.
Diante da declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11/03/2020 reconhecendo a pandemia global do vírus COVID-19, bem como com a identificação dos primeiros casos de pacientes contaminados no Brasil, surgem questionamentos vinculados às relações de trabalho e aos efeitos jurídicos de afastamentos e da realização de trabalho remoto.
O escritório Antônio Vicente Martins Advogados, integrante da Rede Lado, analisou as principais questões que emergem nessa conjuntura, bem como alternativas jurídicas cabíveis e reflexões necessárias, visando a proteção do trabalhador nesse contexto.
SUSPENSÃO E INTERRUPÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
Tendo em vista que se discute os impactos do afastamento de empregados, importa, inicialmente, a compreensão dos efeitos jurídicos da suspensão e da interrupção do contrato de trabalho. Em ambas as hipóteses, embora o empregado não esteja prestando serviços ao empregador durante o período em comento, há a manutenção do vínculo empregatício.
As principais distinções entre os institutos dizem respeito ao recebimento de salário pelo empregado e à contagem do tempo de serviço – para, por exemplo, fins previdenciários. Assim, nas hipóteses de interrupção do contrato, o trabalhador segue recebendo salário e há contabilização do tempo de serviço, enquanto nos casos de suspensão do contrato, não há pagamento de salário e, via de regra, tampouco contagem de tempo de serviço (MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: 2016).
Em atenção à ampla disseminação do vírus COVID-19, foi sancionada a Lei n. 13.979/2020, dispondo medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública resultante da pandemia. A normativa estabelece, em seu artigo 3º, § 3º, que as ausências do empregado decorrentes de medidas propostas para contenção do contágio – como isolamento e quarentena – serão consideradas faltas justificadas; tratando-se, portanto, de interrupção do contrato de trabalho, com regular recebimento do salário. Todavia, importa atentar que tais medidas deverão estar vinculadas à determinação das autoridades locais de saúde, com autorização do Ministério da Saúde, conforme dispõe a Portaria 356/2020, responsável por regulamentar procedimentos da Lei de Quarentena.
Em não havendo determinação dos órgãos de saúde de medidas como quarentena e isolamento, há a possibilidade do afastamento por força maior, como no caso de pandemia, ser compensado com até duas horas extras diárias, durante no período máximo de 45 dias por ano, com fulcro no § 3º, do art. 61 e no art. 501 da CLT. Ademais, se o período de afastamento for superior a 30 dias, há a possibilidade de ser compensado com as férias proporcionais, de maneira que se iniciaria um novo período aquisitivo quando do retorno do empregado às atividades, conforme disposição do art. 133, III da CLT. Quanto aos impactos de eventual paralisação das atividades da empresa aos empregados comissionistas, destaca-se garantia de recebimento de um salário mínimo, bem como possibilidade de discussão para recebimento de padrão salarial médio, aspecto ainda controvertido.
Acrescenta-se que o empregado infectado pelo COVID-19 estará sujeito às regras gerais que dispõem sobre licença por motivo de saúde – isto é, cabe ao empregador arcar com o salário integral do empregado no decorrer dos primeiros 15 dias e, após o 16º dia de afastamento em decorrência da doença, o empregado passa a receber auxílio doença do INSS – interrompendo, portanto, o contrato de trabalho nos primeiros 15 dias e o suspendendo durante o recebimento do benefício previdenciário.
A advogada e desembargadora aposentada, Vólia Bomfim Cassar, ventila a possibilidade de caracterização de acidente de trabalho atípico nos casos em que o empregado for infectado pelo vírus durante o expediente laboral e nas dependências do empregador, se enquadrando em doença ocupacional, conforme teor dos artigos 19 e 20 da Lei 8.213/91, e gozando das garantias inerentes a tal enquadramento. Ademais, a autora defende que o empregador que obrigar o empregado a realizar viagens em período de pandemia tem responsabilidade objetiva pelo contágio consequente do deslocamento, caracterizando-se como doença ocupacional e valendo-se de garantia de emprego pelo período de 12 meses após a cessação do auxílio-doença acidentário, nos termos no artigo 118 da Lei n. 8.213/91.
Nessa conjuntura, merece destaque que se admitirá a redução salarial no período de afastamento tão somente se autorizada expressamente por instrumento coletivo de trabalho como medida para contenção da pandemia e visando evitar demissões em massa, com fulcro no art. 7, VI da CF e art. 611-A da CLT. Acrescenta-se que, com o objetivo de evitar medidas de demissão em massa, há discussões sobre o estabelecimento de lay off por meio de instrumento coletivo, em atenção à questão de saúde pública enfrentada.
LAY OFF
O termo lay off se refere à uma realocação contratual em que, por medida de exceção, o contrato de trabalho pode ser suspenso de forma parcial e temporária, visando atender demandas em um cenário economicamente desfavorável e evitar demissões em massa. A implementação da medida é prevista na legislação trabalhista vigente em duas hipóteses: para requalificação profissional e para redução temporária da jornada de trabalho e da remuneração.
A primeira hipótese, de requalificação profissional, encontra-se prevista no art. 476-A da CLT e, durante o período – que poderá ser de dois a cinco meses –, o empregado passa a receber auxílio compensatório mediante recursos do FAT – Fundo de Amparo do Trabalhador –, respeitando o limite do teto do seguro desemprego aplicável quando da suspensão contratual. Todavia, considerando o contexto de pandemia do COVID-19, interessa também a análise da segunda hipótese de lay off, para redução temporária da jornada de trabalho e da remuneração, prevista no art. 2º da Lei n. 4.923/1965, que estabelece medidas contra o Desemprego e de Assistência aos Desempregados.
De acordo com a normativa, é possível, por meio de acordo com a entidade sindical pertinente, estabelecer redução salarial, não superior a 25% do salário e respeitando-se o salário mínimo, por prazo determinado. Para isso, deve ser constatada motivação decorrente de conjuntura econômica devidamente comprovada, bem como ocorrer a redução da jornada normal dos empregados enquadrados ou de dias laborados. A medida pode ser determinada por um período máximo de 3 meses, prorrogável, nas mesmas condições, caso mostre-se ainda indispensável para a viabilidade financeira da empresa.
Países europeus, como Portugal, têm se utilizado do lay off como alternativa frente aos impactos do COVID-19 na economia. Foi publicada, no Diário da República português, a Portaria n.71-A 2020, que regulamento o apoio imediato de caráter extraordinário, temporário e transitório aos trabalhadores e empregadores afetados pelo surto do vírus COVID-19, bem como a Resolução do Conselho de Ministros n. 10-A/2020, aprovando medidas relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus.
Visando a manutenção dos contratos de trabalho em empresas em situação de crise empresarial, as normativas preveem a possibilidade de um lay off “simplificado”, que altera as regras para a aplicação da medida para mitigação dos impactos da pandemia. A medida está voltada para empresas que tiverem uma queda de 40% do faturamento no período de três meses – ou, se constituída a menos 12 meses, a empresa que tiver queda de faturamento que totalize a média deste período –; nesses casos, será autorizado o corte de um terço do salário bruto, não implicando a suspensão do contrato de trabalho. A medida se aplicará pelo período de um mês, prorrogável mensalmente, após avaliação, até um limite máximo de seis meses. Durante a adoção do lay off simplificado, a Seguridade Social assegurará o pagamento de 70% dos dois terços a serem recebidos pelos empregados.
O lay off simplificado vem sendo criticado por apresentar-se excessivamente oneroso ao empregado, haja vista que o contrato não é suspenso e que, embora o trabalhador passe a receber apenas dois terços de sua remuneração, o empregador poderá solicitar o desempenho de funções não compreendidas no contrato de trabalho, desde que não impliquem em alteração substancial da posição do empregado na empresa. A CGTP – Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – posiciona-se contra a medida, alegando que o lay off simplificado ataca direitos dos trabalhadores e vulnerabiliza ainda mais a população no enfrentamento da pandemia.
HOME OFFICE
Com o aumento de casos confirmados de contaminação pelo COVID-19, diversas empresas estão orientando seus empregados a realizar trabalho remoto, em seus domicílios – também conhecido como “home office”. Esclarece-se que o empregado que desempenha suas atividades ao empregador a partir de seu domicílio encontra-se laborando na modalidade de teletrabalho, não havendo qualquer interrupção ou suspensão do contrato de trabalho, mas tão somente alteração do regime em que o labor está sendo desempenhado.
Para caracterizar-se enquanto teletrabalho, a atividade laborativa deve estar sendo desenvolvida preponderantemente em local fora das dependências do empregador – isto é, não necessariamente precisa ocorrer no domicílio do trabalhador, sendo considerados teletrabalhadores também os empregados que laboram a partir de outros locais, como espaços de coworking. Acrescenta-se que é central para a configuração do teletrabalho que as atividades estejam sendo realizadas por meios telemáticos – o que diferencia a modalidade, por exemplo, do trabalho externo previsto no art. 62, I da CLT.
No Brasil, o teletrabalho foi regulamentado a partir da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e, de acordo com a redação do artigo 75-C, a prestação de serviços na modalidade de teletrabalho deverá constar expressamente no contrato individual de trabalho. A alteração do regime presencial para o regime de teletrabalho, conforme a legislação vigente, deverá ser formalizada em aditivo contratual, sendo imprescindível o mútuo acordo entre empregado e empregador ou o período mínimo de transição de 15 dias para que o trabalhador se adeque à nova modalidade.
Contudo, diante da conjuntura de pandemia do COVID-19 e de ampla veiculação de orientações para que a população evite deslocamentos e ambientes públicos, visando conter a transmissão do vírus, entende-se que é possível a mitigação das regras formais previstas no artigo 75-C para adoção do teletrabalho como medida temporária. Em atenção ao caráter emergencial e transitório da adoção do regime, portanto, viabiliza-se que a modalidade de teletrabalho seja utilizada com a supressão de algumas etapas formais, como o ajuste escrito e o período de transição mínimo de 15 dias.
Reitera-se que o trabalho realizado em regime de teletrabalho é, necessariamente, tempo à disposição do empregador. Por conseguinte, não há falar em redução salarial dos empregados que passam a laborar de forma remota, tampouco em compensação com férias ou posterior realização de jornada extraordinária.
FÉRIAS COLETIVAS
Outra alterna visando a contenção da transmissão do COVID-19 é a concessão de férias coletivas aos empregados, evitando, assim, o contágio em deslocamento e no próprio ambiente laboral. Esclarece-se que, conforme disposição do art. 136 da CLT, o empregado gozará do período férias quando for de interesse do empregador – respeitando-se, além dos limites do período concessivo, o aviso ao trabalhador com antecedência mínima de 30 dias, para que o empregado possa se organizar e melhor usufruir o descanso remunerado.
Contudo, ante a eminente eclosão de uma crise no sistema de saúde diante da rápida propagação do COVID-19 já experienciada em outras nações, entende-se que é razoável a flexibilização da regra prevista no artigo 135 da CLT, dispensando o empregador da realização do aviso de férias com antecedência mínima de 30 dias, bem como, no caso de férias coletivas, do aviso ao Ministério da Economia com 15 dias de antecedência. Em que pese seja razoável que tal medida possa, excepcionalmente, ser tomada de imediato visando o afastamento dos empregados de suas atividades laborativas e a consequente proteção de sua saúde – observados também outros desafios inerentes à conjuntura, como pais que poderão acompanhar seus filhos durante a suspensão das atividades de creches e escolas – ressalta-se que, ainda assim, deve a empregador realizar o pagamento imediato das férias, respeitando o acréscimo do terço constitucional, nos termos art. 7º, XVII, da CF/88 c/c 145 da CLT, bem como informar o Ministério da Economia acerca da medida (art. 139, § 2, CLT).
JUSTA CAUSA E SAÚDE PÚBLICA
Considerando o contexto de pandemia e a crise enfrentada pelas demais nações atingidas pelo surto do COVID-19, tanto o empregado quanto o empregador devem observar rigorosamente as orientações de higiene para contenção da transmissão do vírus, sob pena de cometer ato atentatório à saúde pública e individual. Nesse sentido, destaca-se que é obrigação do empregador a instrução dos empregados sobre precauções para evitar doenças ocupacionais, bem como cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, com fulcro no artigo 157, I e II da CLT. Logo, orienta-se, além da disponibilização de álcool gel e intensificação de demais medidas de higiene pelas empresas, que o empregado com suspeita de contaminação seja imediatamente afastado.
Em atenção a tal contexto, a desembargadora aposentada Vólia Bomfim Cassar salienta que o empregador, ao não adotar medidas preventivas e de contenção do vírus, poderá estar ensejando a rescisão indireta do contrato de trabalho por justa causa, diante do perigo manifesto de mal considerável previsto no art. 483, alínea “c” da CLT, considerando o caso em concreto e a sua real probabilidade de contaminação.
Nessa perspectiva, a NR-1 também prevê o direito de recusa do trabalhador que constatar situação de trabalho envolvendo risco grave e iminente para a sua vida e saúde, devendo informar imediatamente seu superior hierárquico. De acordo com o texto da normativa, considera-se de risco grave a situação que poderá causar doença relacionada ao trabalho com lesão grave à integridade física do empregado. Todavia, ao exercer tal direito, o trabalhador deve também observar o caso em concreto, tanto no que tange ao risco de contágio quanto ao enquadramento do empregado na população de risco, sugerindo-se a busca de consultoria jurídica para a realização desta análise.
Acrescenta-se, ainda, que o empregado que se recusar a atender medidas de higiene também poderá estar incorrendo em justa causa. O trabalhador, portanto, que deixar de adotar as orientações do empregador voltadas à saúde e segurança, como o uso de EPI – abrangendo casos em que determinada a utilização de luvas, máscara e álcool gel, sempre que fornecidas pela empresa – e o afastamento quando há suspeita de contaminação pelo vírus, poderá sofrer advertências, suspensão e, até mesmo, rescisão do contrato motivada por justa causa, com fulcro no parágrafo único do artigo 158 da CLT.
Diante da conjuntura descrita, deve-se buscar a mitigação dos impactos do COVID-19 visando a proteção dos empregados e da população em geral, sem que tais medidas reflitam em lesões aos direitos dos trabalhadores.
Antônio Vicente Martins
Sócio do escritório AVM Advogados Associados.
Julise Lemonje
Advogada Associada ao escritório AVM Advogados Associados.