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Rede Lado

mar 29, 2021

Justiça Digital: trabalhadores, casa, saúde e culpa

Dormir e acordar no mesmo lugar que se trabalha tem sido uma nova (nem tão nova) realidade, pelo menos desde meados de 2020 por conta do Covid-19. De acordo com…

Dormir e acordar no mesmo lugar que se trabalha tem sido uma nova (nem tão nova) realidade, pelo menos desde meados de 2020 por conta do Covid-19. De acordo com uma pesquisa feita pelo Instituto de Administração, o home office foi adotado por cerca de 46% das empresas durante a pandemia e os escritórios de advocacia estão dentro destes dados.

Discussões e pesquisas em torno do trabalho em casa se atenuaram por conta do contexto atual. Segundo um estudo do Institute for Business (IBM), mais de 50% dos funcionários querem permanecer em home office. A pesquisa foi feita em agosto de 2020 com oito países (Alemanha, Espanha, China, Brasil, Estados Unidos, Índia, México e Reino Unido). No Brasil, 52% quer continuar trabalhando em casa e com idas esporádicas à sede da empresa. Porém, a mesma pesquisa mostra como a saúde mental afetou 58% dos entrevistados brasileiros por conta da pandemia e da nova dinâmica de trabalho

Muitos escritórios começaram a mudar e se automatizar bem antes de 2020. Caso da LBS, escritório que tem, desde 2015, ações voltadas para uma nuvem (software online) em comum por conta das sedes espalhadas pelo país (Brasília, Campinas, São Paulo e Goiânia). “O mundo antes de 16 de março não existe mais”, diz Nilo Beiro, advogado trabalhista, sócio da LBS Advogados e Coordenador da Rede Lado. 

“É evidente que algumas pessoas sofreram mais em casa do que no escritório, estamos em uma pandemia, não podemos esperar algo diferente. Apesar disso, o resultado do teletrabalho foi positivo”, afirma Beiro sobre o processo para o home office. As sedes físicas da LBS diminuíram de tamanho e agora quem quiser trabalhar no escritório (depois da pandemia), não terá uma sala específica e sim um local conjunto com outros colegas de trabalho. Beiro ainda explicita que alguns setores não podem trabalhar somente fora do espaço do escritório, mas que o home office foi bem aceito entre os empregados por conta de fatores como o tempo de locomoção e também por terem mais momentos em casa.

Dormindo no escritório

A revista norte-americana da Universidade de Harvard, Harvard Business Review, publicou em julho de 2020 uma edição completa discutindo a “corda bamba” entre trabalho, casa, pandemia e mais: a luta contra o burnout (abordando, principalmente, a questão de viver onde trabalha). Logo no editorial, o professor da Wharton School of Business, da Universidade da Pensilvânia, Stewart D. Friedman, afirma que a questão não é equilibrar o trabalho e vida, mas sim, integrar os dois. Mas a pergunta que fica é: como manter isso de forma saudável morando no Brasil?

A psicóloga do trabalho, mestre e doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília e Universidade de Amsterdam, com enfoque em atendimento para bancários e ex-bancários, Fernanda Sousa Duarte, afirma que o burnout é muito mais um sintoma do que uma doença mental. “A doença é vista como algo individual, esta é a tendência do modelo biomédico. Assim, responsabiliza-se o trabalhador mas não questionam o que neste emprego ou trabalho causa tanta exaustão. Perde-se a dimensão coletiva do trabalho, principalmente em relação à doença mental, pois não se tem consenso de onde surgem (as patologias mentais), mas individualizar é o que convém no contexto em que vivemos”, afirma.

“Há muitas doenças ligadas ao trabalho. Em atendimentos, questionam: eu adoeci por causa do meu trabalho ou foram questões pessoais? É interessante ver como é convocada essa separação entre vida pessoal e trabalho quando é conveniente. Mas quando se estuda a relação (até polêmica) entre trabalho e o adoecimento mental, vê-se que essa separação não existe.”  Fernanda Sousa Duarte.

Ricardo Mendonça, advogado trabalhista do Declatra Paraná e membro da Rede Lado, acredita que não se pode separar trabalho e vida pessoal, ainda mais agora em home office. O Declatra Paraná adotou protocolos de segurança durante a pandemia e as reações foram diversas, afirma: “No escritório, por exemplo, existe um pouco de tudo. Muitas pessoas quiseram sim ficar em home office, outras preferem trabalhar no escritório; já outras, em meio aos dois processos, também mudaram de ideia. Mas, como regra, a postura foi a proteção.” Porém, Mendonça alerta a escolha da Justiça do Trabalho de continuar fazendo audiências presenciais na pandemia, isso não quer dizer que as críticas pela falta de regulamentação das audiências telem presenciais não existam. (http://lado.net.br/index.php/noticias/118-justica-digital-projeto-juizo-100-digital-tudo-na-palma-da-mao)

Para ajudar na adaptação ao home office, o escritório Declatra Paraná deu aos funcionários apoio psicológico durante 45 dias. O trabalho foi feito em grupos e ficava a critério de cada um dos trabalhadores escolher ter o acompanhamento ou não. O foco das reuniões foi a ajuda no controle do medo da pandemia e também na organização do fluxo de trabalho, já que a mudança havia sido brusca. De acordo com Mendonça, o atendimento foi essencial para que pudessem continuar a ter o mínimo de segurança emocional no trabalho que, no momento, é dentro de casa.

Economia no bolso, prejuízo na saúde mental

Seria 2021 o ano zero? O pós-pandemia? Ainda não sabemos. Fato é que boa parte das pessoas continuarão trabalhando em casa mesmo após a vacina. De acordo com o Governo Federal, o home office gerou cerca de 1 bilhão de reais em economia para o Estado em cinco meses, economia que também ocorreu no setor privado.  O trabalhador também pode ter economizado em deslocamento e outras despesas, mas pagou caro em algo que, às vezes, o dinheiro não pode comprar: saúde.

Mais de 45% dos trabalhadores que responderam a uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) afirmaram que sentem fadiga, dores no corpo e sintomas de depressão em decorrência do home office. Um dos problemas é que a pandemia obrigou o funcionário a trabalhar em casa sem ter o mínimo de preparo e sem o devido suporte dos empregadores. Foi literalmente de um dia para o outro que as medidas de proteção foram instituídas.

O aumento das videoconferências em algumas plataformas foi de mais de 500% e este tipo de modalidade é ótima para otimizar tempo, prestar serviços e apresentar propostas, porém, de acordo com estudos  da Universidade de Clemson, algumas “chaves da comunicação” se perdem durante as videoconferências, como o tom de voz, expressões faciais, gestos e outros. Por conta disso, este estilo de reunião acaba tomando mais atenção do que de costume e também cansa mais o participante. (https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/por-que-as-videoconferencias-nos-esgotam-psicologicamente.html)

Demissões, procura de emprego, adoecimento

O desemprego no Brasil chegou na taxa de 14,3% no começo deste ano. Em fevereiro de 2020, a taxa era de 11,2%. A pandemia agravou o que já estava difícil e os setores que mais demitiram foram serviços e comércio. Uma das categorias de profissionais que está sofrendo com as demissões em massa é a categoria bancária.

No começo da pandemia, em março e abril de 2020, os três principais bancos privados que atuam no Brasil (Itaú, Bradesco e Santander) assumiram compromisso de não demissão depois de apelo dos trabalhadores, porém, as promessas não foram cumpridas. As demissões já passam dos 12 mil funcionários em todo o Brasil. Todavia, os bancos lucraram mais no último ano, cerca de 35,6 bilhões.

Em janeiro deste ano, o Banco do Brasil divulgou um programa de demissões que pretende finalizar contrato com 5 mil funcionários e prevê o fechamento de 112 agências pelo país. O banco afirma que quer uma economia anual de 2,7 bilhões até 2025 (diferente dos 353 milhões esperados em 2021), justifica a adequação das agências, postos de trabalho e demissões.

Cristina Stamato, advogada trabalhista do escritório Stamato, Saboya e Rocha Advogados Associados e membra da Rede Lado afirma: “Os bancos (privados) anunciaram no começo da pandemia que não iriam fazer demissões, logo quando o Governo Federal declarou que iria começar o Auxílio Emergencial. (…) É um contrassenso lucrar tanto e demitir os trabalhadores.”, afirma. Leia mais sobre as reintegrações.

Stamato reitera que, quando um bancário é demitido, benefícios como plano de saúde são suspensos e isso pode acarretar em um aumento de pessoas usando o Sistema Único de Saúde. “Na demissão, não só o trabalhador perde seu plano de saúde, mas seus dependentes também. É piorar uma situação que já é uma tragédia, estamos em uma pandemia! E faz o que? Como arrumar outro emprego dessa maneira?”.  Além do que, as metas dos bancários aumentaram na pandemia e o trabalhador acaba fazendo mais, sofrendo mais mentalmente por medo do desemprego.

 Fernanda Sousa Duarte já fez estudos relacionados às políticas de saúde mental dentro de bancos e, de acordo com as pesquisas, há uma individualização em que o resultado do trabalho depende apenas da pessoa, sem contar o contexto coletivo. “Não é bem assim. Deve haver uma condição para este trabalho acontecer, tem que ter recursos para este trabalho. Não adianta agora um bancário em home office tentar vender seguro ou capitalização para as pessoas que perderam o emprego ou estão vivendo de auxílio emergencial. E ainda há o medo da demissão e as metas que são altíssimas”, declara.


Fernanda Sousa-Duarte – Foto reprodução        

Home office, maternidade e saúde

“A implementação do teletrabalho pelo mercado empresarial tem sido muito triste. Não temos dúvidas (advogados trabalhistas) da possibilidade de controle que elas (as empresas) exercem sob o trabalhador. Sem contar que existem muitos empregadores que se aproveitam da situação da pandemia e obrigam os trabalhadores a fazerem jornadas absurdas dentro da própria casa. Não é somente a internet que o trabalhador usa, são outras despesas e o espaço ali não foi feito para ser escritório, mas a casa, apenas”, afirma Tatiana Rossini, advogada trabalhista do escritório Melo e Isaac Advogado e membra da Rede Lado.


Tatiana Moreira Rossini – Foto reprodução

Para além do trabalho dentro de casa, faz-se necessário um recorte no número de desempregados hoje no mundo: o índice de mulheres desempregadas aumentou durante a pandemia e o risco de perder sua renda é de 5% para mulheres e 3,9% para homens, de acordo com o relatório “O vírus da desigualdade” da Oxfam. Cerca de 50% das mulheres afirmam que trabalham muito mais e acumulam muitas tarefas durante o home office. Para os homens, este número é de 11,1%.

Além disso, como declara Sarah Coly, também membra da Rede Lado, na coluna de Djamila Ribeiro para a Folha de São Paulo, “brancos e pretos não estão no mesmo barco nesta pandemia”, na verdade, nunca estiveram. A primeira pessoa a ser atingida pela Covid-19 no Brasil foi uma trabalhadora, mulher, negra, infectada pela empregadora, no local de trabalho, ou seja, a ela o home office nunca foi ofertado e é assim para boa parte da população. 

Das que podem trabalhar em casa, além da jornada de trabalho, muitas fazem tarefas domésticas e também cuidam de seus filhos. Além da advocacia, Rossini tem dois filhos e afirma: “Muitas vezes, durante o dia, as mulheres tem que parar o trabalho para atender alguma demanda da casa, dar auxílio aos filhos… E depois se sentem na obrigação de compensar isso no fim da jornada e acabam trabalhando muito mais. As mulheres são as que mais sofrem com este processo.” A divisão do trabalho de casa não é igualitária e, além de trabalharem mais, as mulheres se estressam mais e acabam desenvolvendo doenças de vários tipos. 

Rossini reitera que as mulheres se sentem culpadas por não conseguirem executar o tanto de tarefas que lhes são exigidas, porém, não se fala sobre essa jornada tripla e às vezes até quarta jornada que as mesmas enfrentam. “Causa muita angústia ter que administrar tudo isso, é muito complicado”, afirma. A advogada também declara que a paridade na jornada de trabalho entre homens e mulheres não pode ser a mesma, porque as mulheres, de modo geral, têm mais obrigações pós trabalho (afazeres domésticos, filhos e outros) e estas tarefas não são socialmente impostas aos homens, então, a jornada também não deveria ser.

“Eu me sinto o tempo todo culpado, com culpa eu não sei do quê” – O Terno

Se pesquisarmos “trabalhadores e culpa” no Google, uma das primeiras matérias têm como manchete “Despreparado para governar, Bolsonaro culpa trabalhadores por desemprego”, artigo de Leonardo Sakamoto para o UOL. Jair Bolsonaro afirmou em entrevista no dia 5 janeiro que: “O Brasil está quebrado, não posso fazer nada”. e também afirmou que a culpa do desemprego é dos trabalhadores, pois, de acordo com ele, não são capacitados para o mercado. 

“Uma coisa é a culpa, outra é a responsabilização; e quando se misturam estas duas coisas diferentes, temos a judicialização de problemas afetivos e a afetação de problemas jurídicos. Ser responsável por uma falha no trabalho é algo que acontece, mas se sentir culpado e transformar aquilo em dívida com o empregador, dívida de gratidão; isso é muito diferente” – Fernanda Sousa Duarte.

A conta do adoecimento mental e da culpabilização pelo desemprego deveria mesmo ser do trabalhador?  “Essa culpa é muito forte.  E sempre vem com soluções individuais como: Você já tentou meditar? Você já tentou caminhar? Mas ninguém questiona como é feito o trabalho. Culpa e vergonha são dois afetos muitos frequentes nos trabalhadores e agora todas estas tendências estão ficando mais agudas e o medo do desemprego acaba sustentando estes dois afetos”, afirma Sousa Duarte.

Em janeiro foi a última parcela do auxílio emergencial e o Ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que só poderia prorrogar o auxílio caso fossem congelados os investimentos em saúde e educação. Em contra partida, nos dados do Painel de Compras do Ministério da Economia, em 2020, Bolsonaro gastou mais de 15 milhões de reais em leite condensado. Um dia após a divulgação destes dados o portal da transparência saiu do ar. Aparentemente, culpa e responsabilidade não são sentimentos que existem no Planalto.