O capitalismo de plataforma usa a máscara do empreendedorismo para esconder o vínculo de subordinação, deixando cada vez mais trabalhadores sem proteção social. Para buscar o equilíbrio de forças nessas relações, o direito trabalhista precisa acompanhar as novas formas de organização da produção.
Desafio é uma das palavras-chave do mundo pós-pandemia. A adaptação a uma nova realidade deve tocar às mais diferentes áreas. No âmbito do direito trabalhista, a missão será lidar com o crescimento e os conflitos do chamado capitalismo de plataforma.
O modelo pode se tornar um dos refúgios dos trabalhadores em razão do agravamento do desemprego e da crise econômica. Isso significa uma massa cada vez maior de cidadãos sendo submetida a relações de trabalho obscuras, precarizadas e sem proteção social.
Em paralelo, o avanço da tecnologia pode interferir no próprio paradigma do direito, que se vê diante da necessidade de se reinventar para lidar com as demandas do novo cenário. Esses são os temas da terceira e última matéria do especial Trabalho Pós-Coronavírus. Você pode acessar as duas primeiras reportagens da série clicando aqui e aqui.
Boa leitura!
ESPECIAL TRABALHO PÓS-CORONAVÍRUS – A LUTA CONTRA OS ALGORITMOS
O capitalismo de plataforma usa a máscara do empreendedorismo para esconder o vínculo de subordinação, deixando cada vez mais trabalhadores sem proteção social. Para buscar o equilíbrio de forças nessas relações, o direito trabalhista precisa acompanhar as novas formas de organização da produção.
Por Luiz Eduardo Kochhann
Ricky Turner não vai receber um salário, apenas honorários. Não vai bater ponto, vai ficar à disposição. Não terá um contrato de trabalho, pois não trabalhará para a empresa, mas com a empresa. Ávido por se tornar seu próprio chefe, ele ouve que será o senhor do seu destino. “Como tudo aqui, Rick, a escolha é sua”, reforça o representante da transportadora com a qual está prestes a fechar uma “parceria”. Na sequência da cena de abertura de Você não estava aqui, apesar do semblante confuso, Rick afirma ter entendido os termos propostos e topa a empreitada sem se dar conta de que está assumindo todos os riscos do negócio. O mais recente filme do diretor britânico Ken Loach ilustra o dia a dia de milhões de pessoas submetidas a uma lógica de trabalho em que a mediação das relações fica a cargo de plataformas digitais, como a Uber. Conforme cresce em abrangência, o fenômeno, chamado de “capitalismo de plataforma” ou “uberização”, se torna um desafio para o direito do trabalho.
Isso porque companhias como Uber, Rappi e iFood vendem um sonho de autonomia e empreendedorismo que talvez maquie a existência de vínculo empregatício. E os trabalhadores ligados a esse modelo ficam sem qualquer tipo de proteção, como férias, 13º salário ou auxílio em caso de acidente. Em sua busca por subsistência, eles precisam aceitar regras de trabalho nebulosas, ditadas pela caixa-preta dos algoritmos. No caso dos aplicativos de entrega e transporte, os profissionais utilizam seus próprios carros e bicicletas para realizar o serviço. Isso permite que a Uber, por exemplo, tenha 4 milhões de motoristas ao redor do mundo (600 mil deles no Brasil) sem possuir um carro sequer. As plataformas de microtrabalho, como a Amazon Mechanical Turk, onde 500 mil trabalhadores estão cadastrados, também fazem parte do setor.
Esse cenário está se configurando em um dos principais desafios do direito trabalhista no mundo pós-pandemia. Em sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo (USP), Renan Bernardi Kalil, procurador do trabalho em São Bernardo do Campo (SP), identificou uma relação direta entre dependência e precariedade no trabalho de plataforma. “Quanto mais dependente da plataforma para sobreviver, maior a precariedade do trabalhador, o que enfraquece sua autonomia para escolher a carga horária”, explica Kalil. Ou seja, o ideal de ser seu próprio chefe parece condicionado a jornadas que podem se estender por mais de 12 horas, mesmo em finais de semanas. Em muitos casos, só assim é possível atingir rendimentos razoáveis. Além disso, Kalil aponta outras especificidades, como a acentuada desigualdade econômica entre os trabalhadores e as plataformas, a imposição unilateral das regras de trabalho pela empresa e a falta de transparência nos processos de precificação e avaliação do serviço.
Em países de língua inglesa, o capitalismo de plataforma ganhou a denominação de Gig Economy (Economia dos Bicos). O Reino Unido tem 4,7 milhões de pessoas nesse setor. No Brasil, em 2019, 3,8 milhões de autônomos utilizavam as plataformas como fonte de renda, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, a pandemia de Covid-19 inflou esse número. Para se ter uma ideia, apenas o iFood recebeu 175 mil inscrições de candidatos para a vaga de entregador em março, no início do isolamento social. O número é quase o dobro do registrado em fevereiro. Segundo uma pesquisa feita pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), 60,3% dos entregadores de aplicativos relataram uma queda na remuneração durante o período da pandemia.
Enquanto as grandes empresas usam o desenvolvimento tecnológico para adotar novas formas de gerenciar a mão de obra, a jurisprudência brasileira parece enxergar subordinação apenas se houver um gerente dando ordens ao empregado. Essa discrepância é um entrave ao enquadramento do capitalismo de plataforma nos vínculos trabalhistas tradicionais. “A única dificuldade em relação à regulamentação do trabalho de plataforma é o fato de as empresas não quererem reconhecer que os profissionais são subordinados. Isso porque não querem arcar com os direitos a que eles, nesse caso, teriam acesso. É uma questão política”, acredita Marcia de Paula Leite, professora do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O resultado disso é a eliminação da proteção ao trabalho, como destaca Kalil, que é membro do Grupo de Estudos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho Sobre a Vida dos Trabalhadores, da USP. “O problema é que o direito do trabalho fica amarrado a uma forma de organizar a produção da metade do século XX. A interpretação jurídica precisa acompanhar o desenvolvimento da organização da produção”, alerta. Fundado com base no sistema de produção fordista das primeiras décadas do século passado, o direito do trabalho precisa rever seu modelo de atuação se quiser continuar desempenhando um papel fundamental na manutenção do equilíbrio nas relações de trabalho. Só assim ele poderá evitar jornadas exaustivas, baixas remunerações e assunção de riscos por parte de quem não controla os preços e os meios de produção.
“É o Estado quem deve garantir a proteção social aos trabalhadores. Mas vivemos um tempo em que se propaga a ideia de que o Estado não deve intervir nessas questões e que elas devem ser deixadas à livre vontade das partes. É um conceito neoliberal que tem muito pouco a ver com a realidade. A história mostra que os trabalhadores/as não têm a mesma força que as empresas para poderem negociar. Por isso, o Estado deve intervir”. – Marcia de Paula Leite, socióloga da Unicamp.
O Brasil ainda engatinha nessa missão, mas alguns países começam a se adaptar, propondo uma regulação do setor por meio de novas legislações e interpretações da lei.
Visões antagônicas
Em 2016, a Court of Appeals, segunda corte britânica mais importante, reconheceu o vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas, o que lhes deu direito a férias remuneradas e salário mínimo, em um caso que foi levado à Suprema Corte pela empresa e aguarda decisão. Outro exemplo vem da França, onde, em 2020, a mais alta jurisdição do país alegou que os motoristas da Uber não constituem a própria clientela nem definem as tarifas cobradas, reconhecendo, por isso, a existência de vínculo de subordinação. Mas o caso mais emblemático é o do estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Lá, na esteira de uma decisão da Suprema Corte Estadual, um projeto de lei regulamentou o vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas de plataforma, garantindo direitos de proteção social como salário mínimo e seguro-desemprego.
A justiça brasileira, no entanto, segue o caminho contrário. Em fevereiro, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) rejeitou por unanimidade o reconhecimento de vínculo empregatício entre um motorista de Guarulhos e a Uber. O principal argumento dos magistrados é a existência de flexibilidade de horários e na decisão de prestar o serviço ou não, o que impediria a configuração de subordinação nos conceitos clássicos previstos pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). Em sua defesa, as plataformas procuram esvaziar o conteúdo laboral das atividades ao afirmar que são meras empresas de tecnologia que facilitam o elo entre duas pontas da cadeia.
Para Kalil, uma mudança de interpretação por parte do judiciário, como aconteceu na Califórnia, seria o primeiro passo para garantir uma atualização da legislação brasileira. “A postura do judiciário em relação à classificação dos trabalhadores é determinante para que ele tenha mais ou menos proteção. Se o TST reconhecesse o vínculo, a plataforma se sentiria pressionada a apresentar alguma espécie de alternativa legislativa”, afirma. Em sua tese, ele sugere a experimentação de uma nova regulação. A proposta cria uma terceira categoria, além dos autônomos e subordinados, a de dependentes. Essa definição envolveria os trabalhadores de plataforma, que ficariam protegidos por boa parte dos direitos previstos na legislação trabalhista atual.
Independentemente de quais sejam as saídas encontradas, os trabalhadores precisam ser ouvidos. No Brasil, uma ampla paralisação de entregadores ocorreu no dia 1º de julho. Entre as reclamações da mobilização, estavam a falta de transparência na precificação, a ausência de qualquer proteção em caso de acidentes e a lógica de avaliação dos aplicativos, que os obriga a fazer jornadas mais longas e gera desligamentos e bloqueios sem explicações. “A gente assina um contrato que fala em R$ 1,50 por quilômetro rodado, por exemplo. Mas, quando você vai fazer a conta, há corridas em que ganhamos menos de R$ 1 por quilômetro. A gente não é consultado quando essa taxa cai ou quando eles mudam o cálculo”, afirma Mineiro, um dos motoboys na linha de frente do movimento, em entrevista à revista Época. A fala de Mineiro escancara a falta de transparência causada pela utilização de algoritmos para mediar as relações de trabalho.
A caixa-preta de regras dos algoritmos, contudo, só existe por decisão dos administradores das empresas. É o que ressalta Marcia de Paula Leite: “Logo, o que precisa ser regulamentado não é o algoritmo, mas sim as relações e condições de trabalho. Seu argumento parte do pressuposto de que a tecnologia não é neutra, mas também não é determinante, podendo ser utilizada tanto para facilitar o trabalho como para aumentar o ritmo e o controle sobre ele. “O que acontece é que a tecnologia é relativamente nova e está sendo utilizada de uma forma selvagem pelas empresas. Elas simplesmente não querem abrir mão do lucro exorbitante que vêm tendo com esse tipo de exploração do trabalho que esse recurso vem lhes permitindo”, complementa a socióloga.
“A tecnologia não é neutra, não surge do nada para começar efeitos no mundo concreto. Ela é criada com determinados objetivos e, da mesma forma que influenciou mercado de trabalho e instituições, ela também é influenciada. É importante termos em mente essa inter-relação entre tecnologia e instituições porque podemos utilizar a tecnologia para jogar a favor de uma visão de mundo mais preocupada em diminuir a desigualdade ou colocar a tecnologia para aprofundar reformas neoliberais”. – Renan Bernardi Kalil, procurador do trabalho em São Bernardo do Campo (SP).
Com os trabalhadores longe do chão de fábrica, a tecnologia também impacta na organização sindical. A articulação dos profissionais de plataforma, ocorrida no início de julho, via grupos de whatsapp e redes sociais, indica alguns caminhos na organização dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, começam a nascer os primeiros sindicatos do tipo na América Latina, como a Asociación de Personal de Plataformas (APP) na Argentina e o Sindicato dos Trabalhadores com Aplicativos de Transportes Terrestres Intermunicipal do Estado de São Paulo (STATTESP). Na Europa, ganha força o cooperativismo de plataforma, quando a articulação dos trabalhadores consegue retirar as grandes empresas da intermediação do serviço, criando, por exemplo, seus próprios aplicativos. “Os sindicatos já demonstraram que têm capacidade de se adaptar a diferentes padrões tecnológicos, como fizeram na passagem do século XIX para o XX, quando substituíram o sindicato de ofício pelo sindicato fordista”, afirma Marcia Leite.
Um novo mindset
Enquanto lida com os impactos da tecnologia no mundo do trabalho, o direito encara sua própria transformação digital. Um exemplo disso é o surgimento de empresas como a MOL – Mediação Online, uma startup dedicada à resolução extrajudicial de conflitos. A advogada Melissa Gava passou a se interessar em métodos alternativos de conflito durante a sua formação, realizada em universidades da Itália, Franca e EUA. Ao voltar ao Brasil, em 2014, ela criou a MOL. “Nos EUA, a gente vê um uso muito grande de mediação. Por lá, grande parte dos conflitos se esgotam na esfera extrajudicial. Os advogados têm uma tabela de honorários própria para esse trabalho”, explica Melissa.
A MOL disponibiliza uma simulação virtual de uma audiência de conciliação, coordenada por mediadores independentes e sem força de decisão jurídica. O modelo de negócio tem traços comuns aos conceitos do capitalismo de plataforma. “A plataforma abre espaço para mediadores que são treinados e qualificados permanentemente. Os casos são disponibilizados de acordo com o perfil de cada mediador”, diz Melissa. Entre eles, não existem apenas advogados. Há desde psicólogos até engenheiros. Todos recebem por hora trabalhada.
O foco da MOL está no segmento corporativo, especialmente em empresas que enfrentam um grande volume de litígios trabalhistas e de proteção ao consumidor, por exemplo. Entretanto, com a pandemia, a plataforma ganhou espaço nos tribunais. Estados como Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais têm conduzido audiências de conciliação online por meio da MOL.
A realização de audiências virtuais deve ganhar cada vez mais impulso após a pandemia. O tema, no entanto, ainda gera controvérsias entre profissionais e instituições da área. Advogados têm solicitado à Justiça do Trabalho o adiamento de audiências de instrução online. As principais reclamações são a falta de segurança sobre o que está acontecendo atrás das câmeras e a possível ausência de condições técnicas para testemunhas participarem das sessões.
A migração da área judicial para o online parece ser um caminho sem volta. Há cerca de 15 anos, existiam apenas processos físicos no Brasil. Para se ter uma ideia, em 2018, todos os processos iniciados no Tribunal Superior do Trabalho (TST) foram feitos por meio eletrônico. Mas essa transformação exigirá uma mudança de paradigma. A Rede Lado, por exemplo, defende a regulamentação do procedimento para assegurar as prerrogativas dos advogados e os direitos das partes.
Ainda assim, a influência da tecnologia deve promover uma profunda alteração no direito daqui em diante. Lidar com esses impactos exigirá resiliência e a adoção de um novo mindset por parte das empresas. “O direito ficou muito tempo isolado. Hoje, está se tornando uma atividade interdisciplinar, que requer uma parceria com outras áreas, como a engenharia de software. Não se trata de uma perda de espaço, mas de um trabalho que passa a ser realizado de forma conjugada”, defende Melissa Gava.