Agrotóxicos no café da manhã
Se você soubesse que está ingerindo veneno, continuaria comendo deliberadamente? Pode ser uma pergunta capciosa, mas até quem sabe que está ingerindo, muitas vezes, acaba escolhendo mesmo assim por conta do acesso e dos valores dos alimentos no Brasil. Em torno desta pergunta, há outras variantes e (muitos) agrotóxicos que compõem hoje a alimentação dos brasileiros.
O Brasil é, desde 2008, o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Vários agrotóxicos proibidos em países como Alemanha e França, são vendidos e usados aqui. Porém, muito dos alimentos que também produzimos com os pesticidas são exportados para a Europa. E a ingestão não para em alimentos in natura. De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Inec), em pesquisa inédita feita pelo Inec revelou a presença de agrotóxicos em alimentos ultraprocessados.
Aquele biscoito (ou bolacha) recheado que muitos comem pela manhã ter até 7 agrotóxicos, incluindo o agrotóxico mais vendido no mundo: o glifosato. Glifosato é um herbicida que tem sido muito estudado, principalmente em relação aos danos que pode causar no corpo humano. De acordo com a Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer (IARC), ligada a Organização Mundial da Saúde, o glifosato pode ser um “provável causador de câncer”.
2020 foi o ano recorde em número de agrotóxicos registrados no Brasil: 493 pesticidas novos. 4% a mais do que no ano anterior. Além disso, o Supremo Tribunal Federal tem discutido a proposta de isentar impostos para agrotóxicos. O único ministro a votar até agora foi Edson Fachin, que votou contra. Gilmar Mendes pediu vista e agora o julgamento não tem data determinada.
O “ônus da deriva”
Érica Coutinho, mestra em Direito e Políticas Públicas e advogada do escritório Mauro Menezes (associado Rede Lado) explica sobre as consequências da pulverização aérea e também sobre casos de camponeses que foram diretamente atingidos. “Em grandes latifúndios, quando há pulverização aérea de agrotóxicos, o produto nem sempre cai exatamente em cima daquela plantação. Com relativa frequência, a aplicação do agrotóxico não atinge somente o local desejado, podendo afetar propriedades vizinhas ou próximas. É o que se chama de deriva. Foi exatamente o que ocorreu em Buriti (Maranhão) e Nova Santa Rita (Rio Grande do Sul).”
Érica cita estes casos (Buriti e Nova Santa Rita) em que comunidades foram atingidas pela pulverização indiscriminada de agrotóxicos. No caso de Nova Santa Rita, por exemplo, a comunidade atingida foi um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que tem uma iniciativa agroecológica e não faz uso de agrotóxicos em seus alimentos. Neste caso, o MST é um grande produtor de arroz e a comunidade teve um prejuízo por conta da “deriva” de agrotóxicos feita por latifundiários da região.
Houve também pessoas das duas comunidades que relataram sintomas de intoxicação por conta da pulverização direta de agrotóxicos nas proximidades. Érica explica a situação vulnerável que estar comunidades são colocadas por conta dessas situações. “Como muitos municípios e estados não possuem legislações que proíbam a pulverização aérea, as comunidades e populações que sofrem os danos acabam tendo que buscar a reparação no Poder Judiciário. A questão que se coloca é que os danos são profundos e duradouros. Englobam padecimento de plantações, contaminação de solos e águas e adoecimento de pessoas que podem desenvolver doenças graves após anos da exposição ao agente nocivo. É por essa razão que entendo que iniciativas legislativas que proíbam a pulverização aérea são passos importantes contra os agrotóxicos, sem prejuízo, claro, de eventuais responsabilidades definidas na esfera judicial.”
Apenas no estado do Ceará há uma lei estadual que prevê a não pulverização de agrotóxicos. Mas isso veio após o triste assassinato de um trabalhador rural, José Maria Filho, conhecido como Zé do Tomé. O agricultor morava na Chapada do Apodi, norte do Ceará e fazia denúncias incisivas sobre o uso excessivo e a consequência dos agrotóxicos. Fez coro contra o uso de pesticidas e foi assassinado em 21 de abril de 2010. A lei que proíbe a pulverização aérea no estado foi sancionada em 2019.
“A discussão acerca da pulverização aérea chegou ao STF. A Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 6137) contra a Lei 16.820/2019, do Estado do Ceará, e também Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 667) contra diversas leis municipais de cidades localizadas nos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina que proíbem a pulverização aérea”, explica Érica Coutinho.
A advogada explica que há um embate forte entre os grandes produtores (que querem a pulverização aérea) e setores do campesinato, meio ambiente e outros que são favoráveis a proibição. De acordo com Larissa Bombardi, pesquisadora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, no podcast “As Árvores Somos Nozes” do Greenpeace, afirma que os agrotóxicos são “a cola” que integra todo o sistema de latifúndio e monocultura no Brasil, justamente porque provocam danos no solo, poluição de rios, morte de abelhas responsáveis pela polinização e também impactam de forma negativa a saúde humana.
“Gente é para brilhar, não para morrer de fome”
O desmatamento aumentou no Brasil desde que Bolsonaro e Salles assumiram o poder e boa parte do agronegócio do país apoia a “passada da boiada” para que mais terra seja desmatada e possa se “plantar” boi, soja, milho e outras comodities que movem a economia. O Brasil é um dos três maiores produtores de alimento do mundo. Porém, há dados que comprovam que cerca de 19 milhões de pessoas estão passando fome no país.
Paulo Guedes, ministro da Economia, comparou a quantidade de comida que europeus comem com os brasileiros. O ministro sugeriu que os excedentes da classe média e dos restaurantes fossem doados a pessoas vulneráveis. Isso tudo foi dito durante o Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento promovida pela Associação Brasileira de Supermercados. Neste mesmo evento, o ministro anunciou que vai criar um grupo de trabalho que avalie a flexibilização da validade dos alimentos.
Ações individuais podem ajudar no combate à fome, porém, é a mesma lógica de achar que economizando água no banho o mundo terá mais deste recurso natural, sendo que a cada 100 litros de água, 72 são consumidos pelo agronegócio.
E mesmo depois dessas colocações do ministro da Economia, a volta da fome no Brasil, o aumento dos preços de produtos básicos; em 2020 o agronegócio teve um crescimento de 5,7% em relação ao ano anterior. Então, por que existem milhares de pessoas passando fome e outras milhões em insegurança alimentar? Na verdade, a maioria desta produção vai para o exterior e o resto que fica é produzido por pequenos agricultores, incluindo o MST.
“Para uma nação soberana precisamos de soberania alimentar”
Com 120 agroindústrias, 160 cooperativas e quase 2000 associações de trabalhadores rurais é o MST quem coloca comida na mesa de milhões de brasileiros, mesmo que estes não tenham ciência disso ou mesmo criminalizem o movimento de alguma maneira. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina e, de acordo com o IBGE, mais de 70% dos alimentos consumidos no Brasil vem da agricultura familiar.
José Damasceno, membro da coordenação do MST Paraná afirma que uma nação só é soberana quando há a soberania alimentar. O que é a soberania alimentar? Segundo o site do Palácio do Planalto, a soberania alimentar que diz respeito ao “direito dos povos de definirem as políticas, com autonomia sobre o que produzir, para quem produzir e em que condições produzir. Soberania alimentar significa garantir a soberania dos agricultores e agricultoras, extrativistas, pescadores e pescadoras, entre outros grupos, sobre sua cultura e sobre os bens da natureza.”
“Ter soberania na nação também é ter soberania alimentar para suprir o próprio povo. Isso é fundamental. O país, primeiro, precisa olhar pela saúde do seu povo, a saúde que entra pela boca. E para isso, os alimentos tem de estar, de preferência, sobrando e serem de qualidade. Nós do MST, sempre defendemos a soberania alimentar que é, por exemplo, termos o controle da tecnologia a serviço da produção de alimentos, a pesquisa (caso da EMBRAPA) a serviço do povo brasileiro e do campesinato. Se acontece alguma catástrofe, o que é bem comum no capitalismo, o país tem que ter controle sobre a sua produção de alimentos para proteger a população”, afirma José Damasceno.
Mas, como já citado, o Brasil entrou novamente no mapa da fome. O MST doou em 2020 mais de 4 mil toneladas de alimento e 700 mil marmitas a famílias em situação de vulnerabilidade social. “Nesse momento da história brasileira, com essa crise generalizada, aumento da fome, aumento do desemprego, cabe às pessoas comprometidas com a vida fazerem alguma coisa. Não só os camponeses, os assentados da Reforma Agrária e os pequenos agricultores, mas a sociedade e a militância de forma geral que é comprometida com a vida. Nós do MST chegamos à conclusão que temos uma vasta experiência não só na defesa do meio ambiente e da produção agroecológica e estamos fazendo 37 anos de movimento. Nós só chegamos até aqui graças ao apoio da sociedade, então, conjugamos duas coisas: levar parte do que produzimos para amenizar o sofrimento da fome e compromisso com a sociedade e apoio neste momento,” diz Damasceno sobre a doação de alimentos.
Amar o campo, ao fazer a plantação,
não envenenar o campo é purificar o pão.
Amar a terra, e nela plantar semente,
a gente cultiva ela, e ela cultiva a gente.
A gente cultiva ela, e ela cultiva a gente.
Zé Pinto
O MST tem cerca de 50 mil famílias produzindo em sistema de agroecologia, que consiste em respeitar o ecossistema da plantação, não usar pesticidas e proporcionar uma produção sustentável.
Desde 2016 o MST vende as suas produções nas feiras do Armazém do Campo, que também se tornou uma marca vinculada ao movimento e tem filiais em várias cidades do Brasil. No Armazém do Campo são vendidos produtos orgânicos produzidos por vários assentamentos. Os Armazéns constituem cerca de 70% das vendas dos produtos do Movimento Sem Terra.
“O pequeno agricultor e um grande fazendeiro está no mesmo patamar de acordo com a política do governo federal, mas não é assim na prática. O grande produtor, muitas vezes, tem suas dívidas negociadas para 200 anos e o pequeno produtor não, o assentado não…Nós assentados estamos à mercê do mercado. Nós somos jogados na mesma lógica que os grandes proprietários,” reitera Damasceno.
Neste ano, ruralistas se articularam para receber perdão das dívidas com valor bilionário no Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). Enquanto pequenos proprietários, que são os responsáveis pela maior parte da alimentação dos brasileiros, sofrem com a falta de incentivo deste governo e a desigualdade nas cadeias de produção.
Mariana Ornelas – Rede Lado