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O Marco Temporal e a demarcação de terras indígenas

O julgamento da tese do Marco Temporal reacendeu a discussão em torno da questão indígena, da perda de direitos e de terras a que esta população vem sistematicamente sendo submetida. Pela tese, as populações indígenas só teriam direito à terra em dois casos: se tivessem posse da área, ou em disputa judicial quando da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. A votação da tese foi interrompida logo em seu primeiro dia pelo ministro Alexandre de Moraes, que pediu destaque, e não tem previsão para voltar à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF). A questão é defendida pelos interessados nas terras, em especial ruralistas, e pode servir de base para a definição de diversos conflitos semelhantes em todo o país.

A conjuntura política tem se mostrado especialmente desfavorável aos povos indígenas. Não que alguma vez na história, desde que portugueses e suas caravelas aportaram por aqui, tenha sido melhor, mas dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o desmatamento cresceu 46% nos dois primeiros anos do atual governo, ou 150% a mais se considerarmos somente as terras indígenas. A dupla Bolsonaro e Salles não tem tornado a vida dos povos tradicionais mais fácil, ao contrário: o chefe da pasta do Meio Ambiente está sendo investigado por exportação ilegal de madeira. Além disso, o agronegócio, um dos principais inimigos dos indígenas nas questões envolvendo posse de áreas, cresceu 24,31% em 2020 e é a nossa grande commodity, o que abre brecha para que tudo seja permitido em nome do avanço desta atividade, ainda que isso signifique mais áreas desmatadas.

O garimpo é outro vilão nessa luta dos indígenas pelo direito à terra que sempre lhes pertenceu. A atividade avançou mais de 30% em terras Yanomami e ganha força em regiões com terras indígenas demarcadas, como o Alto e o Baixo Tapajós, no Pará. “Não dá para contar com a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O próprio presidente da FUNAI não está interessado. Eles falam que a Polícia Federal está nos protegendo e não está! A invasão está ocorrendo dentro e fora das regiões demarcadas, é só destruição da nossa terra”, afirma Auricélia Fonseca Arapium, líder indígena da região do Baixo-Tapajós e diretora do Conselho Indígena Tapajó-Arapium.

A falta de socorro aos povos indígenas não causa estranheza a quem conhece o modo de operar do atual governo. “Todos os nossos inimigos estão no poder”, resume a advogada Mary Cohen, militante pelos Direitos Humanos, membro da Comissão Justiça e Paz da CNBB e associada da Rede Lado. A institucionalização da violência contra o meio ambiente é clara quando nos deparamos com dados que mostram os números do desmatamento da Amazônia Legal e das queimadas batendo recordes no Brasil atual. “A luta dos povos indígenas não vai parar se o Bolsonaro sair, vai continuar, seja quem vier. Porém, agora esperamos que sobre alguma coisa dessa política da terra arrasada. Que sobre povos indígenas, terras e biodiversidade.”

Belo Monte: uma década

É fato que a luta não começou agora. Em governos anteriores, questões ambientais ligadas às terras indígenas não eram honradas. Como durante a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, que há 10 anos afeta territórios e populações ribeirinhas sem, até hoje, produzir nem um terço do que foi prometido como contrapartida pela devastação causada. Hoje, a maior hidrelétrica 100% brasileira não consegue evitar uma proeminente crise energética, mas deixou um rastro de violência e problemas sociais em Altamira (PA), onde os trabalhadores responsáveis pela construção da obra moraram, e de destruição com mais de 35 mil hectares de floresta derrubados para que fosse feito o largo da hidrelétrica. “É muito frustrante. Tentamos de todas as formas legítimas para conseguirmos que Belo Monte não fosse construída. Populações foram prejudicadas, biomas foram destruídos e sempre alertamos que a hidrelétrica não valia essa destruição”, afirma o ex-procurador da República Felício Pontes Jr.

Leia mais e em detalhes sobre o assunto na matéria especial publicada no site da Rede Lado.

Você precisa saber

Senado aprova MP que privatiza Eletrobras

Em meio à ameaça de uma nova crise energética no Brasil, com possibilidade de racionamento ainda em 2021, o Senado aprovou a privatização da Eletrobras, responsável por 30% da energia elétrica produzida no país. A Medida Provisória enviada pelo presidente Jair Bolsonaro teve o texto ratificado pelos parlamentares.

Pela redação, as ações da empresa poderão ser capitalizadas, ou seja, colocadas à venda na Bolsa de Valores sem possibilidade de compra por parte da União ou de bancos públicos, o que significaria o começo de uma diluição da companhia. De acordo com a MP, o governo deixará de ter 61% das ações e passará a ser detentor de 45% delas, com o direito de veto em decisões da assembleia de acionistas por meio de uma ação de classe especial (golden share), quando poderá evitar que algum acionista ou grupo acumule mais de 10% do capital votante.

Prioridade para o Executivo, que estima uma redução de 7,36% nas contas de luz, a proposta foi aprovada com o placar de 42 votos favoráveis e 37 contrários, desagradando até mesmo de políticos historicamente liberais, principalmente pelo prazo curto que tiveram para apreciar o texto e seus desdobramentos. A MP segue agora para a Câmara dos Deputados, que tem até hoje, 22 de junho, para decidir.

Jovem é vítima de racismo após vencer concurso de beleza em Minas Gerais

Maiza de Oliveira foi escolhida para ser a “rainha” de Santo Antônio do Amparo, em Minas Gerais, ao participar de um concurso de beleza. Mas a alegria pela conquista foi abalada após a jovem de 19 anos ser vítima de mensagens racistas enviadas por uma mulher da cidade pelo Whatsapp.

“Esse negócio de inclusão social tá foda. É os preto é que tá mandando em tudo mesmo. É cota na escola, é cota aqui, é cota ali…”, diz o áudio enviado a grupos pelo aplicativo. “E os branco tá tudo levando tinta. Da próxima vez, nós tem que pular num tanque de ‘criolina’ e sair tudo pretinha, aí pode candidatar a qualquer coisa, que ganha”, continua.

Oliveira diz que já havia sido vítima de comentários debochando de sua aparência antes mesmo da competição, mas resolveu não se calar e registrou um Boletim de Ocorrência para que a autora da mensagem seja punida. “Isso é racismo e é crime, machuca e mata pessoas que se sentem mal. A gente já está em um mundo evoluído e não existe mais fazer isso com as pessoas”, disse a vencedora do concurso.

A Polícia Civil de MG abriu inquérito para apurar o caso e já sabe que quem enviou os áudios foi Nair Amélia Avelar Rodrigues. A mulher foi intimada a prestar depoimento, mas estaria viajando, segundo informações da família, para quem as mensagens foram “tiradas de contexto”.

Análises

12 de junho: Dia de Combate ao Trabalho Infantil – O vírus que coloca em risco a proteção da infância

Por Ana Caroline Tavares e Maria Gabriela Vicente Henrique de Melo, do escritório LBS Advogados

O trabalho infantil nunca deixou de existir no Brasil, infelizmente, e a pandemia de Covid-19 serviu para escancarar esse fato. Pior: houve aumento de 270% do trabalho infantil no período de isolamento social. São indicativos de como a pandemia potencializa os riscos a que a criança está exposta no cenário atual. Políticas públicas e medidas institucionais que poderiam mudar essa realidade, no entanto, não são implantadas. Continue lendo.

Bolsonaro quer acabar com o abono salarial do PIS/PASEP para aumentar Bolsa Família

Por CUT

Quem ganha até dois salários mínimos, seja no serviço público ou no privado, pode receber até 1.100 reais por ano com o abono salarial do PIS/PASEP. São cerca de 25 milhões que atualmente recebem a renda extra, instituída em 1970, e que podem ficar sem a cifra: é nesse dinheiro que o atual governo quer mexer para aumentar o Bolsa Família. Continue lendo.

Antes de sair…

Eventos

  • Amanhã, dia 23/6, a live “Inovação e Tecnologias Sociais no âmbito da Agenda 2030” foca na questão da sustentabilidade e da alimentação. É no YouTube.
  • Estão abertas também até dia 23/6 as inscrições para a Oficina Literária Boca de Leão, de escrita criativa. As aulas são online, das 14h às 16h de terças-feiras.
  • Na próxima segunda, dia 28/6, ocorre o III Ciclo de Debates Inclusivos, com o tema “Inclusão de Pessoas com Deficiência no Ensino Superior e os Desafios do Ensino Remoto”.
  • Também começa no dia 28/6 a II Jornada de Feminismos Decoloniais em Questão. A programação inclui debates, oficinas e lançamentos de livros, entre outros.
    Já passou, mas vale a pena: a live “Uberização: para onde vai o mundo do trabalho?”, que foi ao ar na quinta passada (17/6), ainda está disponível no YouTube.
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    Dicas culturais

  • Teatro: amanhã, 23/6, às 15h, tem o espetáculo Matriz Tetraédrica Infinita, que mistura circo e música. É no YouTube.
  • Podcast: já começou a segunda temporada do podcast Tramas da Quarentena, que traz entrevistas com artistas e produtores culturais paraibanos.

Policiais mulheres realizam sonho de menina com câncer em hospital de Minas Gerais

A pequena Isabelly Vitória Pereira Santos, de 11 anos, que sonha ser policial, recebeu a visita de mulheres que já estão na carreira. Internada no hospital Márcio Cunha, em Ipatinga, Minas Gerais, a garota está tratando um câncer e pediu para conhecer as futuras colegas de profissão ao projeto “O que importa para você?”, que realiza desejos dos pacientes.

“Ela sonha desde pequena em ser policial. Minha filha está muito feliz com essa surpresa”, disse a mãe da menina, a dona de casa Rosângela Pereira Dias. “É sempre muito gratificante ser estímulo para crianças. Isso faz com que nos tornemos pessoas melhores e possamos cada vez mais inspirar pessoas e servir como exemplo de integridade”, disse a 2ª tenente Cledeane Maria de Paula Garcia, do 14° Batalhão de Polícia Militar de Minas Gerais, que participou da ação.

Além da visita, Isabelly ganhou de presente das policiais duas bonecas, uma com o nome de Isabelly gravado. Ela ainda recebeu um vídeo com mensagens de toda a corporação especialmente para a pequena. O projeto “O que importa para você?” tem o objetivo de contribuir com a recuperação de pacientes e possibilitar alguns momentos de alegria e conforto em meio à luta contra a doença.

Fim de semana marcado por protestos e pelo número de 500 mil mortos

No sábado (19), milhares de pessoas foram às ruas em mais de 400 cidades pedindo impeachment, vacina, saúde e comida. Também foram registrados protestos em 17 países apoiando a população brasileira que foi às manifestações e reivindicando as propostas apresentadas.

Os protestos tiveram presença de várias entidades sindicais, partidos políticos, artistas e políticos. Somou-se milhares de pessoas em São Paulo, Rio de Janeiro e outras grandes capitais. Assim como no dia 29 de maio, as manifestações foram marcadas por cartazes com frases fortes contra o governo e também de luto pelas vítimas da Covid-19.

No mesmo dia, o Brasil chegou a infeliz marca de 500 mil mortos pela doença. O país tem 29,84% de pessoas vacinadas com a primeira dose e 11,47% com a segunda dose.

Fontes: Folha de S. Paulo, Carta Capital, G1

Foto: Mídia Ninja

Megaprojetos na Amazônia, o neoliberalismo de fronteira

 

A hegemonia neoliberal tem imposto um processo grave de desconstituição de direitos o país, do que são exemplos as reformas trabalhista e previdenciária. Na Amazônia, todavia, esse regime econômico tem dispensado níveis civilizatórios e acentuado a exclusão social, a expropriação, a violação de direitos dos povos tradicionais, a degradação ambiental, fragilizando os órgãos destinados a promoção do meio ambiente a proteção dos povos tradicionais.

Essa história se repete no caso da criação de mais um Polo Graneleiro no Pará, no município de Abaetetuba, pela Cargill, com capacidade de movimentar milhões de toneladas de grãos. O itinerário desse empreendimento, mostra muito “mais do mesmo”, daquilo que tem sido a face dos empreendimentos econômicos na Amazônia, a expropriação da terra, exclusão social, a violação de direitos para quilombolas, ribeirinhos, pescadores, extrativistas que ocupam e preservam suas terras, cultura e tradições e a degradação do meio ambiente.

As irregularidades começam pela ausência de consulta prévia para comunidades tradicionais atingidas com a instalação do Terminal de Uso Privado (TUP)-Abaetetuba.
Em seguida, embora anuncie a instalação do porto em diversos documentos oficiais , os registros agrários constam em nome de K. F. Menezes Consultoria Ltda, pertencente ao ex-secretário de transportes do Estado, Sr. Kleber Menezes, posteriormente BRIC Logística, sem correspondente processo de regularização fundiária em nome da Cargill Agrícola S. A nos arquivos da Secretaria do Patrimônio da União – SPU, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, da Prefeitura Municipal de Abaetetuba.

Em sequência, a área reivindicada pela empresa é de um apossamento irregular. Isto porque a mesma incide dentro de um Projeto de Assentamento Agroextrativista, PAE – o PAE Santo Afonso, na Ilha do Xingu, instituído pela Portaria INCRA nº 37, de 28 de novembro de 2005, publicado no Diário Oficial da União nº 229, seção 1, página 110, do dia seguinte, com área de 2.705,6259 hectares, na Ilha do Xingu, e capacidade de “assentamento” de 108 unidades agrícolas familiares e posteriormente ampliado para 188 famílias.

Depois, a BRIC Logística afirma que a partir da matrícula nº 2675 do Cartório do 1º Ofício de Abaetetuba, obteve um título de traspasse emitido em 2003 pela Prefeitura Municipal de Abaetetuba. Acontece que se trata de um título nulo, ante incompetência do ente público municipal para regularizar terras públicas circunscritas em patrimônio da União, conforme art. 20 da Constituição Federal. Um vício insanável e que não pode gerar efeitos para atingir direitos e constituir ameaça concreta de desaparição forçada de comunidades tradicionais do PAE Santo Afonso, que ali se mantém por gerações.

Essa sequência de vícios foi solenemente ignorada por órgãos como Secretaria de Patrimônio da União, INCRA/SR-01 e Advocacia Geral da União, os quais desde 2015 produziram atos administrativos convergentes ao pedido de regularização fundiária requerido pela BRIC Logística. Notas técnicas, pareceres, despachos, ofícios têm sido extensamente produzidos nos últimos seis anos, intensificados, sobretudo, a partir de 2017, conforme se pode verificar nos autos do processo nº 54000.084888/2020-14.

Na realidade, com ouvidos moucos às graves implicações em desfavor das comunidades tradicionais, SPU, INCRA e AGU se mostraram empenhados em consumar a redução parcial do assentamento agroextrativista.

Isso em contrariedade ao entendimento proferido pelo Supremo Tribunal federal, em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4269, relativa à Lei 11.952/2009, de que a regularização de terras ocupadas por quilombolas ou comunidades tradicionais não pode ocorrer em nome de terceiros. Logo, a empresa não pode desafetar terras tradicionalmente ocupadas no interior do PAE Santo Afonso.

A instalação do empreendimento acarreta violação de direitos ao infringir diversas legislações nacionais e internacionais, a exemplo da Convenção 169, a Constituição Federal de 1988, o Decreto nº 591/1992, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, ratificada pelo Brasil no Decreto 678/1992, especialmente no que se refere ao direito à vida e à integridade pessoal (artigos 4 e 5), às garantias judiciais de acesso à justiça (artigos 8 e 25), à proteção da honra e da dignidade (artigo 11); o Decreto Federal nº 5.051/2014, que prevê em seu art. 6.1, alínea “a”, a obrigação do Estado de consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, em particular, de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente, e em seu artigo 7.1 que os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural e em seu artigo 20, medidas de proteção ao trabalho dos povos interessados, incluindo a igualdade, a informação, a não submissão a condições perigosas para a sua saúde, a sistemas de contratação coercitivos e a acossamento sexual;

Também se observa violação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº 6.040/2007), que reconhece e consolida os direitos dos povos e comunidades tradicionais, garantindo seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, em diferentes biomas e ecossistemas, em áreas rurais ou urbanas. Do mesmo modo, ataca-se a Resolução nº 4, de 11 de março de 2020, capítulo I, § 5º, o qual assinala que “o Estado deve assegurar a eficácia dos instrumentos legais para acesso à informação que sejam úteis à prevenção, apuração ou reparação de violações aos Direitos Humanos”;

Nesse contexto, a comunidade resiste e luta para afirmar seus direitos de humanos, sociais, culturais e ambientais.
Com o apoio da Clínica de Direitos Humanos da UFPa, sob orientação do Prof. Girolamo Tracani e da Mestranda Tatiane Vasconcelos e da intensa mobilização e apoio de organizações sociais, essa luta obteve importante vitória, com a suspenção da tramitação dos requerimentos da BRIC Logística (Cargill) no Incra, pelo escândalo configurado naquela expropriação das comunidades.

Mas uma vitória parcial, na realidade, porque o processo permanece vivo e a posse irregular permanece, com a ocupação da área pela Cargill, de forma agressiva, com cercas elétrica e expedições de barcaças e pessoal naquela área.
A manutenção da integralidade do perímetro do PAE Santo Afonso e Ilha do Xingu, ainda tem um caminho de luta pela frente, para a cessação definitiva dos procedimentos que visem reduzir o tamanho do PAE e evitar os danos aos direitos culturais que essa expropriação representará sobre a área remanescente.

Paulo Sérgio Weyl A Costa
Doutor em Direito
Advogado, Sócio Fundador da WFK, Sociedade de Advogados
Presidente do WFK-DH, Instituto de Direitos Humanos

 

MP da privatização da Eletrobrás será votada hoje no Senado

A Medida Provisória que permite a privatização da Eletrobras será votada hoje a partir das 10h no Senado. O texto traz o plano de capitalizar ações da empresa, ou seja, coloca-las na Bolsa de Valores (e não poderiam ser adquiridas pela União e nem por bancos públicos).

É o começo de uma diluição da empresa pois no texto também está escrito que é possível que a Eletrobras faça ofertas secundárias de ações de propriedade da União ou de empresa por ela controlada, assim, dissolver a participação do Brasil na empresa.

A MP foi enviada por Jair Bolsonaro (sem partido) em fevereiro de 2021 e estava prevista para ser votada ontem (16), porém, a oposição pressionou para mais tempo e o presidente da casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) adiou para hoje.

A Eletrobras é responsável por 30% da energia produzida no país. Hoje, o Brasil está em risco de um novo racionamento de energia por conta da crise hídrica.

Fontes: Folha de S. Paulo, Carta Capital, Brasil de Fato, Valor Econômico

“O Meio Ambiente somos nós”: terras indígenas, leis predatórias e um novo Haximu

“Querem proteger os poderosos. Querem nos calar, nos retirar daqui a qualquer custo. Querem nos dobrar, mas não vergaremos. (…) Queimaram nosso galinheiro, soltaram animais para destruir nossas roças. Quiseram impedir a pesca com desculpa de que era para proteger os rios. Como se não fôssemos a gente que cuidasse das coisas. Como se não fôssemos parte de tudo isso. Estivesse tudo nas mãos de garimpeiro e fazendeiro, estaria destruído.” Trecho do livro “Torto Arado” de Itamar Vieira Junior, livro vencedor do prêmio Jabuti de 2020.

A obra conta a história de duas irmãs que vivem em uma fazenda no interior do Brasil, duas mulheres negras que tiveram as vidas marcadas pela questão da terra, que é uma questão ainda muito atual, principalmente entre a demarcação de terras indígenas e quilombolas. Esta obra ficcional tem um tom tão real que chega a ser utópica, mas não é. É real e atual. Auricélia Fonseca Arapium é líder indígena da região do Baixo-Tapajós e diretora do CITA (Conselho Indígena Tapajó-Arapium). Milita pelo movimento desde os 14 anos. Auricélia afirmou que esperava uma parenta (do povo Munduruku) que teve a casa queimada e a plantação arrasada.

“Depois daqui vou encontrar minha parenta de Munduruku. Queimaram tudo. Tudo. E ainda pegaram um boi que eles criavam e assaram para fazer churrasco para eles (os garimpeiros). Além de tirarem a nossa terra, eles nos humilham”, afirma Auricélia. O garimpo avançou mais de 30% em terras Yanomami e continua a avanças em regiões como o Alto e Baixo Tapajós e todas as regiões que tem (ou não) terras indígenas demarcadas. O conflito com os garimpeiros aumentou durante 2020. Os Munduruku estão em situação tão grave, que o Ministério Público Federal do Pará (MP-PA) pediu a Augusto Aras, procurador-geral da República, que seja feita uma solicitação ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que haja uma atuação imediata da Polícia Federal em proteção do povo indígena.

“Não dá para contar com a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O próprio presidente da FUNAI não está interessado. Eles falam que a Polícia Federal está nos protegendo e não está! A invasão está ocorrendo dentro e fora das regiões demarcadas, é só destruição da nossa terra”, afirma Auricélia. Há ainda a questão de aliciamento de indígenas para que o garimpo seja legalizado, porém, não é isso o que as comunidades querem. “Olha, sinceramente, no começo dos anos 2000 a gente lutava pelo nosso reconhecimento, para manter a nossa cultura, agora, nós estamos em um momento que lutamos para manter a nossa terra, para viver”, continua Auricélia. Mais da metade dos indígenas vive fora das terras reivindicadas

A mão assassina do Estado

“Todos os nossos inimigos estão no poder”, é o que afirma a advogada, militante pelos Direitos Humanos, integra a Comissão Justiça e Paz da CNBB e é associada da Rede Lado. De acordo com Mary Cohen, o governo de Jair Bolsonaro (Sem Partido) “institucionalizou a violência”. Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente, foi um dos nomes que fez com que o Brasil tivesse número recorde de desmatamento. De acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o desmatamento da Amazônia Legal é o maior em 10 anos. As queimadas também tiveram número recorde.

E não para por aí. Além da morte da biodiversidade, das florestas, da poluição dos rios e da devastação da terra (seja para o garimpo ou para a agropecuária), há as de invasão das terras indígenas, mesmo que isso custe a vida de pessoas. Mary Cohen ainda diz: “A luta dos povos indígenas não vai parar se o Bolsonaro sair, vai continuar, seja quem vier. Porém, agora esperamos que sobre alguma coisa dessa política da terra arrasada. Que sobre povos indígenas, terras e biodiversidade.” A advogada ainda afirma que antes, em governos populares, havia uma tolerância em deixar o povo viver, mesmo que de maneira precária, pois o Estado estava começando a alcançar essa população com políticas públicas, hoje, a mão do Estado é “uma mão assassina”.

“Já desafiaram e construíram Belo Monte em outros governos, por exemplo. Territórios que prometeram a demarcação não foram demarcados. Também tiveram a oportunidade de mudar a legislação, mas não fizeram. No fim do governo Dilma começaram novas ações de demarcação, mas ela foi impeachmada e precisa da homologação do presidente para ser efetivo. O Bolsonaro não vai homologar”, afirma Auricélia Arapium.

“Nós não vamos pagar nada, é tudo ‘free’ “

Além do Ministério do Meio Ambiente, há outras comissões que são lideradas por apoiadores do governo e também por apoiadores do agronegócio. É o caso da Comissão de Meio Ambiente, na qual passam todos os projetos ligados às leis ambientais. A presidente é Carla Zambelli (PSL-SP) e o vice é Coronel Chrisóstomo (PSL-RO). Zambelli afirmou que antes de integrar a comissão, não sabia o que era grilagem. Há também a Comissão de Agricultura e Pecuária, liderada por Aline Sleutjes (PSL-PR) e Comissão de Constituição e Justiça, liderada por Bia Kicis (PSL-RJ). São por essas três comissões que os projetos de preservação ambiental, uso da terra e agricultura são discutidos e aprovados. As três (Aline, Bia e Carla) foram indicadas por Bolsonaro e apelidadas de “Bolsonaro’s Angels” (fazendo alusão às ‘Panteras’).

Mas por quê trazer essas Comissões à tona? Justamente porque elas se complementam. Aline Sleujtes (PSL-PR) já afirmou que sua prioridade é o chamada Projeto de Lei da regularização fundiária, que pode ser interpretada como uma ‘regulamentação da grilagem’. A proposta prevê a anistia de invasores de terras públicas e pode estimular a prática, normalmente ligada ao desmatamento e destruição de terras indígenas. Alguns juristas já consideraram essa proposta inconstitucional, porém, a líder da Comissão de Constituição e Justiça é Bia Kicis (PSL-RJ), aliada de Sleutjes, Zambelli, Bolsonaro, Salles e cia ltda. A CCJ tem a função de avaliar a constitucionalidade dos projetos.

Em dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento cresceu 46% nos dois primeiros anos do atual governo, se comparado a 2017 e 2018. E em terras indígenas o número é ainda mais assustador: 150% a mais de desmatamento desde que Bolsonaro e Salles assumiram. Salles está sendo investigado por exportação ilegal de madeira. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moras, determinou a quebra de sigilo bancário e fiscal do mesmo e também o afastamento de Eduardo Bim do comando do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis).

O agronegócio cresceu 24,31% em 2020 e é a nossa grande comodity. Agropecuaristas de todo o Brasil têm safra recorde anualmente, seja na soja, no milho e também na exportação de carne. A maioria de nossa produção é exportada e a desculpa para que o agronegócio avance no desmatamento é de que a população “precisa comer”. De qual população eles estão falando? O Brasil sofre com 125 milhões de pessoas em insegurança alimentar.

É importante ressaltar que: os danos da exploração ambiental, da caça e extermínio dos povos indígenas são, muitas vezes, irreversíveis. Vide o caso de Belo Monte.

“A memória ancestral é isso aqui: os índios se lembram da onde vieram, sabem quem são. Os brasileiros não sabem quem são, e a maioria deles nem sabe da onde vieram.” – Antônio Krenak.

Felício Pontes Jr. é procurador da República e foi um dos principais agentes atuantes contra o que hoje é a hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Há quase 10  anos a geradora de energia foi iniciada e hoje, depois de ligada a última turbina, ainda não produz um terço do prometido

“É muito frustrante. Tentamos de todas as formas legítimas para conseguirmos que Belo Monte não fosse construída. Populações foram prejudicadas, biomas foram destruídos e sempre alertamos que a hidrelétrica não valia essa destruição”, afirma o procurador da República.

“Belo Monte foi construída em “suspensão de segurança”. Foram mais de 20 ações, com uma equipe imensa de especialistas, biólogos, ambientalistas, procuradores…Quando a gente entrava na Justiça, dessas 20 e tantas ações, nós tínhamos decisões favoráveis no mérito. Mas também diziam o seguinte (a Justiça): os índios não foram consultados, então vamos suspender. Depois o presidente do Tribunal dizia que não iria analisar este fato (indígenas) e que daria razão à União porque o país precisa de energia. E foi assim, nós não tínhamos mais o que fazer. São ações de caráter constitucional, estão chegando ao Supremo Tribunal Federal agora,”diz o procurador.

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Altamira foi considerada em 2017 a cidade mais violenta do Brasil. Altamira é uma das cidades atingidas diretamente pela construção de Belo Monte. O estudo feito em conjunto com Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que a cidade teve a maior taxa de homicídios e mortes violentas com causa indeterminada dentre todas as cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes. E isso está diretamente ligado a construção da hidrelétrica.

“Imagine: colocaram o dobro de pessoas dentro de uma cidade que não comportava isso para construir a hidrelétrica. A cidade não tinha estrutura. Virou um caos, colapsou”, diz o Felício Pontes Júnior. Mas o rastro de destruição que perpassa Belo Monte não parou por aí. Foram destruídos cerca de 35 mil hectares de floresta para que fosse feito o lago da hidrelétrica e agora o Xingu não tem a vazão imaginada na época da construção. Além disso, houve desmatamento para a construção de alojamentos e acampamentos para os trabalhadores que chegaram à usina.

No documentário EU + 1 de Eliane Brum, que fala sobre a vida dos ribeirinhos do Xingu durante a construção da hidrelétrica, um dos ribeirinhos, João da Silva, estava disposto a se sacrificar na ilha em que morava (ateando fogo) para chamar a atenção do mundo sobre o que estava acontecendo em Belo Monte. “Toda essa conjuntura causou um transtorno social na população, mas mais que isso, um transtorno psicológico muito grave”, afirma Felício Pontes Júnior.

Belo Monte foi construída com a promessa de ser a maior hidrelétrica 100% brasileira. E é. A última turbina foi ligada por Jair Bolsonaro (Sem Partido) em novembro de 2019 e, de acordo com a hidrelétrica, com toda a sua capacidade, pode gerar 10% de toda a energia nacional. Porém, Brasil vive uma crise hídrica e isso irá promover uma crise energética também. O país vive um período de seca alarmante, o Rio Xingu não tem tido chuvas proeminentes na cabeceira de suas águas e isso também está ocorrendo em outros rios que comportam hidrelétricas. De acordo com especialistas, é muito provável que a população brasileira passe por apagões, racionamento e aumento da conta de energia. Além do que, há um debate proeminente sobre a privatização da Eletrobrás.

Ainda em tempo: ‘Marco Temporal’ e PL 490

A tese do ‘Marco Temporal’ surgiu novamente. De acordo com a tese, as populações indígenas só teriam direito à terra se tivessem de posse da área ou em disputa judicial por causa do local em 5 de outubro de 1988, promulgação da Constituição Federal. O julgamento estaria previsto do dia 11 ao dia 18 de junho de 2021. Logo no primeiro dia (11), o ministro Alexandre de Moraes pediu destaque, o julgamento foi interrompido e não tem previsão para reabertura. Cabe ao presidente da Suprema Corte, Luiz Fux, reconduzir a pauta. 

O ‘Marco Temporal’ é defendido por ruralistas e interessados em áreas de comunidades tradicionais e a decisão poderá redefinir os rumos de vários conflitos por terras no Brasil. O objeto a ser avaliado é uma reintegração de posse pedido pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng (Terra indígena Ibirama-Laklãnõ), onde também vivem Guaranis e Kaingang. Essa decisão será um norte para que a Justiça avalie outros conflitos. Várias lideranças indígenas afirmam: “Nossa história não começa em 1988!”, inclusive a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. 

Há também a discussão na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) sobre o PL 490 há anos e abra espaço para grileiros, garimpeiros, madeireiros e outros empreendimentos predatórios. Inviabilizará as demarcações das Terras Indígenas, que já estão totalmente paralisadas no governo Bolsonaro.

“Estamos vivendo uma crônica de um massacre anunciado. Um novo Haximu. Haximu é o único processo de genocídio da história do judiciário brasileiro. Garimpeiros mataram crianças, jovens, idosos, no início da ocupação madeireira nas terras Yanomamis em 1980 e 1990 e está acontecendo tudo de novo. É bem possível que o passado se repita”, diz Felício Pontes Júnior.

 

Mariana Ornelas – Rede Lado