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Desafio: inclusão digital de advogados idosos

Neste ano, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ lançou como meta para os próximos anos a implantação e o desenvolvimento do programa Justiça 4.0, cujo objetivo é tornar a Justiça brasileira 100% digital. É provável que o lançamento do programa nesse momento se deva às adaptações que tiveram de ser feitas na forma de entrega da prestação jurisdicional durante o período da pandemia do COVID -19.

Desde março de 2020, as atividades presencias nos tribunais estão suspensas, tanto para os jurisdicionados, quanto para servidores, magistrados e advogados. As dificuldades do momento demandam paciência, resiliência e criatividade de todos os que trabalham e dependem do funcionamento contínuo da Justiça. O uso predominante da internet e de ferramentas digitais tem possibilitado a continuidade do trabalho na advocacia, visto que audiências e sessões de julgamentos estão sendo feitas, via reunião online, com a presença de advogados, magistrados, partes e testemunhas. O quase domínio da tecnologia da informação e do computador como ferramenta, tornou-se requisito essencial para a atuação na advocacia, sendo que para o advogado jovem, a familiaridade mostrou-se natural. Muito embora o jovem advogado tenha maior domínio em relação as ferramentas tecnológicas, a advocacia que lhe é oferecida na grande maioria das vezes é precária, onde as condições de trabalho nem sempre são adequadas, muitas das vezes com a necessidade dele até valer-se de meios próprios para exercê-la, com contratação a margem da lei. Se os tempos do avanço tecnológico é excludente ao advogado idoso, ele é em muito restritivo e excludente ao jovem advogado

Já para o advogado idoso, o novo cenário é uma antecipação sem precedentes de um processo de adaptação que se iniciou em 2013 com a implantação do PJe e que ainda estava em ordem de absorção antes da Pandemia. Se o debate em torno da inclusão digital do advogado idoso já era uma pauta necessária, hoje é obrigatória, diante da perpetuação do uso massivo dos meios digitais para o exercício da profissão.

De acordo com dados da OAB Nacional, hoje são 219.638[1] advogadas e advogados ativos no Brasil acima de 60 anos de idade, número que justifica a necessidade do debate em torno da inclusão digital tanto por parte da OAB, no papel de entidade representativa de classe, quanto do próprio poder judiciário como poder constituído, cujo dever é alinhar-se às políticas de promoção e valorização do trabalho do idoso, conforme prevê o Estatuto do Idoso. O processo de digitalização da Justiça tem sido cada vez mais ousado, o que por sua vez exige do trabalho da advocacia familiaridade com o mundo digital. A novidade da vez é a digitalização dos processos para formação de um big data jurídico que alimentará a inteligência artificial: “alimentar o DataJud de forma automatizada e transformar, em texto puro, decisões e petições, a fim de ser utilizado como insumo de modelo de IA.”[2] A questão é que, quando os advogados idosos estão se acostumando com PJe e se despedindo do processo 

físico, já há a inteligência artificial sendo alimentada para proferir e prever decisões.

Toda essa movimentação é resultado da expansão da internet – internet ubíqua – fluidez, rapidez no processamento de informações e internet das coisas, características da Quarta Revolução Industrial de Klaus Schawb. O evidente avanço tecnológico propiciado por essa fluidez de dados alcançou o trabalho na advocacia e o modificou profundamente, criando patamares de distinção entre aqueles que possuem domínio no uso de ferramentas tecnológicas (geralmente os jovens) e aqueles que não tiveram a possibilidade de acompanhar a mudança na mesma velocidade. Constata-se, portanto, que a adoção cega da tecnologia, sob o signo do avanço puro e simples, dissociada da ideia de adaptação, nem sempre é símbolo de evolução e progresso, porque ao longo do caminho alguns ficam para trás. Assim como a Quarta Revolução Industrial não chegou para todos ainda, o mesmo ocorre com a Justiça 4.0, que não chegará para os idosos que não possuem o conhecimento necessário do uso de ferramentas indispensáveis para a atuação nesse novo conceito de justiça proposto. Fala-se em inteligência artificial quando o protocolo de peças processuais e as provas no formato de áudio e vídeo ainda são um calvário, até mesmo para os mais jovens.

Após mais de um ano de pandemia em que a autuação na advocacia segue ocorrendo integralmente no formato digital, discute-se a perenidade dessa “nova” forma de advogar. Fato que não é nem um pouco incômodo para o CNJ, que já leva em frente o projeto de digitalização da Justiça. Aparentemente, por entender que tudo tem funcionado sem maiores problemas. Porém, o mundo real não é 4.0 para o advogado idoso, tendo em vista que os sinais de esforços por parte das instituições responsáveis pela inclusão digital ainda são incipientes ou inexistentes.

Não se trata aqui de desmerecer a digitalização da Justiça, mas sim de alertar para a necessidade de implementações tecnológicas de modo a permitir a inclusão simultânea dos advogados, sob pena de se preterir a riqueza de conhecimento acumulado por esta parcela expressiva da advocacia. Vale lembrar que ferramentas digitais não possuem vida própria e que haverá sempre a necessidade de um advogado experiente para alimentar a inteligência artificial com teses jurídicas desenvolvidas ao longo de anos de prática e estudo. A descartabilidade digital não deve envolver o advogado idoso que, sob essa ótica, faz parte do presente da advocacia tanto quanto o advogado jovem.

Há dois caminhos no horizonte, a exclusão progressiva do advogado idoso causada pela implantação da tecnologia como única porta de acesso, ou, a inclusão, a qual deve necessariamente se iniciar pelo chamamento público ao debate desses 219.638 advogados idosos inscritos, a fim de se mapear e expor as reais barreiras encontradas para o desempenho da atividade. Somente assim será possível a criação de políticas efetivas de inclusão dos advogados idosos na advocacia digital.

Vale registrar, por fim, as palavras de uma advogada, aluna do curso de inclusão digital realizado no Paraná em 2017, as quais sintetizam a urgência do debate: “O primeiro encontro foi uma experiência extremamente positiva. Os colegas muito envolvidos, comprometidos, com ânsia de aprender. Como aluna do curso senti e ouvi o quão agradecidos eles estão por serem lembrados e valorizados, num momento em que a tecnologia vem sendo aplicado em todos os aspectos da vida profissional e cotidiana”.[1]

A construção de uma Justiça 4.0 distante da realidade dos idosos, e até como forma de exclusão e precarização para a juventude, não pode significar ou materializar-se como avanço, quando para sua implantação profissionais ficam pelo caminho.

Meilliane P. Vilar Lima – Advogada LBS e mestranda em Direito do Trabalho e Relações Sociais

 

[1] https://www.caapr.org.br/noticia/1919/curso-de-inclusao-digital-para-adultos-insere-advogados-no-mundo-da-informatica/

[2] https://www.cnj.jus.br/tecnologia-da-informacao-e-comunicacao/justica-4-0/

Moraes pede vista e julgamento sobre Marco Temporal é suspenso

Nesta quinta-feira (15), o julgamento sobre a tese do Marco Temporal foi suspenso após o pedido de vista do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. Com isso, o julgamento fica sem data para terminar, já que a discussão só será retomada depois que Moraes devolver o processo. 

Até o momento, a tese tem dois votos, Edson Fachin votou contra a tese e Kássio Nunes Marques votou a favor. A tese do Marco Temporal envolve a demarcação de terras indígenas e colocaria as terras tradicionais como direito indígena se fossem ocupadas até dia 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição.  

Nunes Marques afirmou: “Uma teoria que defenda que os limites das terras estão sujeitos a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral abre espaço para conflitos de toda ordem sem que haja horizonte de pacificação”. E também: “a propriedade privada é elemento fundamental das sociedades capitalistas, como é a brasileira atual”. “A insegurança sobre esse direito é sempre causa de grande desassossego e de retração de investimentos.” 

Há setores do agronegócio interessados na aprovação do Marco Temporal, isso abriria espaço para novas investidas de invações às terras indígenas. Em cerimônia no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro (sem partido) disse, sem comprovações, que o fim do Marco Temporal poderia significar desabastecimento e mais inflação. 

O relator, Edson Fachin, defendeu que a posse indígena é diferente da posse civil pois a Constituição garante o ‘direito originário’ às terras. “Autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente”, afirmou.  

Discussão sobre o relatório da reforma administrativa é retomada hoje, em meio a protestos

Há cerca de um ano a Proposta de Emenda à Constitucional 32/2020 está em tranmitação na Câmara, o projeto de Reforma Administrativa do governo Bolsonaro. Os alertas para a nocividade do texto são vários, não só para empregados públicos estatutários, mas também para celetistas.  

Vários trabalhadores das áreas públicas se mobilizaram em protestos durante 2020 e 2021, nesta semana os atos continuaram. Ontem (14), a comissão especial da Câmara dos Deputados discutiu o relatório sobre a reforma administrativa, entregue pelo Deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA). Deputados de oposição também ocuparam a Câmara para protestar contra a reforma proposta e vários trabalhadores protestaram do lado de fora. 

Um dos pontos propostos é que a cada eleição os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) possam demitir e contratar pessoal sem concurso público e sem exigência de qualificação, por tempo indeterminado. A sessão será retomada hoje (15) e o parecer proposto por Maia deverá ser votado até amanhã. (16). 

Dia da Independência foi marcado por atos contra Bolsonaro em todo o país

Ainda que o presidente Jair Bolsonaro tenha tentado tornar o 7 de Setembro uma data de manifestações em apoio a seu governo, os 199 anos da Independência do Brasil foram marcados, também, por atos contra a agenda política do chefe do Executivo. Realizado há 27 anos neste dia, o Grito dos Excluídos levou às ruas mais de 300 mil pessoas em pelo menos 200 cidades do país pedindo o impeachment do presidente, além de vacinas, comida e trabalho.

O tema deste ano foi “Vida em primeiro lugar” e, além do Brasil, outros 80 países registraram as manifestações. O Grito realizou também ações de arrecadação de alimentos e produtos de higiene para serem doados à população necessitada.

A Coordenação Nacional do Grito dos Excluídos e Excluídas é formada por 24 organizações entre movimentos sociais e populares, pastorais sociais, igrejas, sindicatos e partidos políticos. “A riqueza das imagens produzidas – fotos, vídeos, cards, textos – expressam a força do Grito que nesses 27 anos mudou a cara militarizada do 7 de Setembro e da Semana da Pátria”, avalia a coordenação. “Mas sabemos que a nossa luta não se encerra no dia 7 de Setembro. Estamos vivendo um momento de crises – social, ambiental, sanitária, humanitária, política e econômica –, sobretudo causadas pela ação nefasta de um governo genocida, negacionista e promotor do caos que visa principalmente destruir, de qualquer forma, a democracia e a soberania do nosso país”, completa.

O outro lado

Ao mesmo tempo, nas manifestações favoráveis ao governo, infladas pelo próprio presidente, seguidores de Bolsonaro pediram por pautas antidemocráticas, como punição aos ministros do Supremo Tribunal Federal, a volta do voto impresso – pauta já descartada pelo Congresso – e até uma intervenção militar no país. Tudo com direito a muito verde e amarelo, faixas (inclusive em inglês) e poucas pessoas usando máscaras.

O próprio presidente esteve presente em duas delas: a primeira em Brasília, onde fez uma entrada triunfal a bordo de um Rolls-Royce 1952 dirigido pelo ex-piloto Nelson Piquet, mas não discursou; a outra em São Paulo, na qual falou ao público presente e ampliou ainda mais a crise entre o governo e o Supremo. “Não aceitaremos mais que qualquer autoridade, usando a força do poder, passe por cima da nossa Constituição. Não mais aceitaremos qualquer medida, qualquer ação ou qualquer sentença que venha de fora das quatro linhas da Constituição”, disse. “Esse retrato que estamos tendo nesse dia não é de mim, nem de quem está em cima desse carro de som. Esse retrato é de vocês. É um comunicado, é um ultimato para todos que estão nos três poderes”, exclamou.

No entanto, não demorou dois dias para que Bolsonaro amansasse o tom e voltasse atrás em suas palavras – frustrando muitos dos apoiadores mais fanáticos. Na quinta-feira, dia 9, assinou uma carta escrita pelo ex-presidente Michel Temer, em que promete respeitar as instituições e atribui suas falas no dia da Independência ao “calor do momento”.

Você precisa saber

Ministro Fachin vota contra tese do Marco Temporal

Já se arrasta desde o dia 26 de agosto o julgamento que reavalia a tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal. Retomada no dia 8 e interrompida no dia seguinte, a decisão afeta direitos dos povos indígenas e restringe a garantia dos territórios tradicionais.

No voto proferido no último dia 9, o ministro Edson Fachin foi contrário à tese, defendendo que a posse indígena não se iguala à posse civil e deve ser ater à Constituição, garantindo o direito originário às terras. Segundo Fachin, “os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais, que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna aos índios” e “a terra para os indígenas não tem valor comercial, como no sentido privado de posse”. “Trata-se de uma relação de identidade, espiritualidade e de existência”, disse.

A votação deve continuar na quarta-feira (15), quando o ministro Nunes Marques iniciará a leitura de seu posicionamento. Mais de 150 povos indígenas estão acampados em Brasília protestando para que o Marco Temporal não seja aprovado.

Informalidade pode adoecer trabalhadores

Quando as taxas de desemprego aumentam, outra taxa costuma crescer quase que na mesma proporção: a da informalidade. De um lado, o desemprego causa estresse, ansiedade e até depressão, que por sua vez podem levar a doenças como hipertensão e diabetes. Por outro lado, trabalhar na informalidade também traz a pressão por resultados e desempenho a qualquer custo e, o que é pior, sem qualquer respaldo caso o trabalhador ou trabalhadora venha a adoecer.

O problema aumenta porque algumas dessas pessoas lidam com longas jornadas de trabalho, violência constante e dificilmente têm disponibilidade de procurar o sistema de saúde nos horários comerciais, então a saúde vai piorando cada vez mais. De acordo com o professor de Medicina da UFMG Helian Nunes, a falta de uma cultura de valorização dos direitos trabalhistas no Brasil agrava essa situação. “O tema é complicado porque tem uma interface não só na saúde, mas na sociedade, nas nossas crenças e de políticas públicas”, afirma.

Para a professora de Direito da UFMG Lívia Miraglia, é necessário inserir estas pessoas na formalidade e, com isso, garantir seus direitos trabalhistas, o que impactaria na qualidade de vida profissional.

Análises

Minirreforma trabalhista reprovada no Senado torna Justiça do Trabalho inacessível

Por Rede Lado

Ainda que já tenha sido rejeitada pelos Senadores em votação, a Medida Provisória 1045, conhecida como Minirreforma Trabalhista, acende um sinal amarelo em relação às intenções do governo Bolsonaro no sentido da precarização das relações trabalhistas e de cortes de benefícios conquistado ao longo de décadas por trabalhadores e trabalhadoras. Esta análise detalha o assunto e evidencia como sua não aprovação é uma vitória e ao mesmo tempo um alerta à classe trabalhadora no Brasil. A inclusão de 407 emendas no texto original, no meio do processo, alterou completamente o sentido e o objeto inicial da medida, com a adição pontos como a mudança de nome das horas extras, que passariam a se chamar contribuições facultativas, e o montante pago de 20% em vez dos 50% de adicional atuais. A redação alterava as regras não só da CLT, mas também do Código de Processo Civil, dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais e da Justiça Federal. Continue lendo

Antes de sair…

Eventos

  • Hoje, às 10h, tem o webinar internacional “Challenges of Modern Regulation” com o Prof. Jean Tirole, da Universidade de Toulouse.
  • Também hoje, 14/9, às 19h, tem evento virtual no canal da OAB com o tema “Separação, Divórcio e Partilha de Bens”.
  • Segue até quarta, 15/9, a VIII Conferência Internacional de Direitos Humanos em formato virtual.
  • De 18 a 23/9, o IV Congresso de Pesquisadores/as Negros/as (Copene) da região Sudeste, com o tema “Ações afirmativas no Brasil: projeto de nação antirracista”, congrega trabalhos acadêmicos, conferências, oficinas e atividades culturais de forma online.

Dicas culturais

  • Música: o Pianístico 2021, de 15 a 19/9, tem programação presencial e virtual, com exibições no YouTube de atrações nacionais e internacionais do piano.
  • Cinema: a 2ª edição do Festival de Cinema Russo apresenta oito produções, de 16/9 a 10/10, de forma online.
  • Podcast: Biscoito para Ouvir é uma série de podcasts que irá comentar, entrevistar artistas e personagens importantes, além de contar histórias sobre lançamentos do rico acervo da gravadora Biscoito Fino.

Idosos deixam isolamento pela primeira vez para fotografar em campo de girassóis

Morador do Lar São José, localizado em Cerquilho, no interior de São Paulo, um grupo de idosos quebrou o isolamento social que vinha mantendo desde o início da pandemia de Covid-19, há quase um ano e meio, na última semana. Mas o motivo valeu a pena e rendeu lindas imagens: eles foram conhecer uma plantação de quase dois quilômetros quadrados repleta de girassóis.

Sem poder receber visitas e sem realizar outras atividades a que eram acostumados, como as feiras e peças de teatro, o passeio renovou o ânimo dos velhinhos. “A gente volta muito rico de lá porque a gente via a alegria deles. Nos últimos dias, esse foi o comentário que tinha na cidade. A gente fica com o coração quentinho, é essa a nossa sensação”, diz a coordenadora do abrigo Daniele Provasi Xavier.

Os idosos não foram os únicos a curtir a florada de girassóis plantados pelo agrônomo Antônio Carlos Sebastiani com o objetivo de alimentar pássaros. Diversas pessoas da região têm ido até o local para registrar a beleza das flores. “Eu levei os velhinhos pra eles verem, tirarem foto. Ajuda as pessoas porque é uma coisa que impressiona”, conta Sebastiani.

Reforma Administrativa – O alvo não são os outros

Enquanto todos os olhares da sociedade se voltam para os possíveis desdobramentos das falas golpistas e dos atos antidemocráticos engendrados por Jair Bolsonaro, na câmara legislativa, caminha a passos largos o projeto de reforma administrativa, cujo conteúdo visa alterar substancialmente a organização da administração pública.

 

No contexto atual, melhor seria a imediata suspensão da tramitação da PEC, todavia prioritária para o poder executivo. Tal conclusão não requer muita elucubração teórica.  Ter sensatez e sentir a voz das ruas é o suficiente para nos dizer que o momento não pede uma reforma administrativa de tamanha envergadura, sobretudo quando o corpo do governo federal se descola do seu espírito público-democrático.

 

O povo que é alheio à PEC clama por trabalho, renda e vacina para garantir sua subsistência.

 

Como sensatez e espírito público-democrático são inexistentes no Governo atual, voltemos aos meandros da reforma administrativa, particularmente às questões afetas aos empregados públicos vinculados à Administração Pública, sob o regime da CLT.

 

Para quem não acompanha o dia a dia do legislativo e o debate travado em torno do projeto — o qual, até aqui, avança a toque de caixa —, subsiste uma questão central na proposta de emenda constitucional que pode passar inteiramente despercebida: o público-alvo destinatário da reforma administrativa.

 

É bem verdade que discursos frágeis e vazios daqueles que temporariamente ocupam o poder — como os proferidos pelo Ministro da Economia, a quem um importante jornal recentemente se referiu com a alcunha de “Chicago loser” — podem, eventualmente, passar uma falsa imagem de que a reforma se limita aos servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário das três esferas da Federação.

 

Todavia, basta um olhar mais atento para notar que praticamente todas as alterações pretendidas pela PEC nº 32 de 2020, direcionadas aos servidores públicos estatutários, também valerão para os empregados públicos celetistas.  Aqui vale parafrasear às avessas uma das celebres frases do filosofo Jean Paul Sartre: “o inferno não são os outros”.

 

Não é mesmo! O alvo da reforma administrativa, ou o inferno arquitetado por Paulo Guedes e cia, não se limita aos servidores regidos pela lei 8.112 de 1991.  A alça de mira do governo federal enquadra todo o funcionalismo público lato sensu.

 

Embora tenha havido um abrandamento do projeto original, com o acolhimento de diversas emendas apresentadas na Comissão Especial, criada pela Câmara dos Deputados para analisar o tema, não há dúvidas de que a reforma impõe retrocesso histórico aos trabalhadores de estatais, ao atingir não só os futuros empregados públicos, mas também os atuais, em desrespeito à plena observância aos direitos adquiridos, como é enganosamente propagado por alguns membros do Executivo e do Legislativo.

 

 

 

Essa afronta aos direitos adquiridos se evidencia nos dispositivos que extingue  vantagens que hoje são concedidas pelas estatais, aos seus trabalhadores, tais como: I) férias em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano; II) adicionais referentes a tempo de serviço, independentemente da denominação adotada; III) aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos; IV) licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente de tempo de serviço, independentemente da denominação adotada; V) progressão ou promoção baseadas exclusivamente em tempo de serviço; dentre outras.

 

Para além da extinção dos direitos acima exemplificados, a PEC nº 32 de 2020 traz instrumentos que se afeiçoam com a verve destrutiva do neoliberalismo, sob o improvável discurso da otimização da administração pública.  Isso, conquanto acabe por precarizar os serviços públicos, sob a falácia de que o empregado público tem muitas regalias, quando de fato há um notório enfraquecimento das condições de trabalho, que resultará da extinção de direitos históricos.

 

Exemplos dessas convicções ideológicas se apresentam nos dispositivos da PEC, cujo teor: I) permite a demissão do empregado público por extinção do cargo, em razão do reconhecimento de que se tornou desnecessário ou obsoleto; II) aprofunda a constitucionalização da avaliação periódica de desempenho, incluindo a obrigatoriedade da participação do cidadão avaliar o serviço prestado; III) veda a estabilidade para empregado público de estatais, por meio de negociação coletiva ou de ato normativo que não seja aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada;  IV) impõe a aposentadoria compulsória como modalidade de punição.

 

Outro ponto de atenção se refere à ampliação das hipóteses de contratação por tempo determinado, para “atender necessidade temporária”. Dessa forma, caso o texto substitutivo seja aprovado, as estatais poderão contratar trabalhadores temporários — a exemplo de pesquisadores na EMBRAPA, bancários na Caixa Econômica Federal, engenheiros na CODEVASF e analistas de sistemas no SERPRO.  Ou seja, aqueles que têm o papel central na realização da própria finalidade social do ente público.

 

Ineficiência, inchaço estatal, privilégios e regalias, essas são algumas das falsas premissas que norteiam os defensores da Reforma Administrativa. Defensores estes que desconhecem a realidade da administração pública brasileira, cuja importância é vital para todos nós.

 

Essa ideia simplista, de pretensa equiparação entre empregados públicos e privados, atenta não só contra a administração pública e seus empregados, mas em última análise, contra a própria sociedade brasileira.  Sociedade que nada mais espera do Estado, que não o cumprimento da sua função social.

 

Definitivamente, o alvo não são os outros: o alvo é você!

 

Brasília, 9 de setembro de 2021.

 

Ricardo Quintas Carneiro

 

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, em 1988. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito do Trabalho. É advogado em Brasília, Sócio da LBS Advogados, integrante da Rede Lado.

 

 

Filipe Frederico Ferracin

 

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Governança Global pela Universidad de Castilla-La Mancha – Espanha. É advogado de LBS Advogados, integrante da Rede Lado.